Diretora da OCDE condena regras do Carf. Tributaristas rebatem
JOTA.Info 2023-04-26
A diretora da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) Grace Perez-Navarro enviou, no último dia 31 de março, uma carta ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, condenando as regras de funcionamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
A comunicação chegou após uma visita da representante internacional no início daquele mês à Brasília, onde os dois discutiram questões atuais relacionadas ao processo de recurso administrativo fiscal no Brasil. Segundo a carta, Haddad forneceu informações e pediu a opinião da entidade.
Sob uma perspectiva comparada, ela teceu críticas à participação de representantes do setor privado no processo de decisão e defendeu o retorno do voto de qualidade — instrumento que permite ao presidente do colegiado, sempre um representante da Fazenda, desempatar julgamentos.
O voto de qualidade foi extinto em 2020 via medida provisória (MP) pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL). O novo dispositivo estabeleceu que empates seriam decididos em favor do contribuinte, o que gerou mudanças na jurisprudência do conselho administrativo.
“A menos que um modelo melhor e mais eficaz seja desenvolvido, pode ser apropriado voltar à prática anterior,” sugeriu Perez-Navarro, acrescentando que “isso não terá um impacto negativo nos direitos dos contribuintes, porque eles ainda manterão seu recurso à revisão judicial independente”.
Tramita, no Congresso Nacional, uma MP assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que retoma o instrumento, mas o governo já sinalizou que trabalhará para a proposta ser aprovada via projeto de lei. A expectativa é que isso aconteça antes de a medida provisória caducar.
A OCDE, relatou a diretora, conduziu uma análise comparativa preliminar e constatou que a maioria dos países analisados possui algum tipo de processo de recurso administrativo, mas não um que envolva representantes do setor privado no processo de revisão de tomada de decisão.
“Em vez disso, as revisões são realizadas por funcionários do governo da administração tributária ou Ministério da Fazenda. Em contraste, as regras brasileiras atuais permitem o envolvimento de juízes leigos, que antes ou depois de sua nomeação atuam como advogados ou juristas no setor privado.”
Ela censurou também o fato de eles não serem profissionais de carreira, mas nomeados por um “curto período” e de a remuneração ser “significativamente menor” em comparação com a que poderiam obter no setor privado. Combinados os fatores poderiam criar “um potencial risco de conflito de interesses”.
A pesquisa realizada pela OCDE identificou que, até o momento, apenas três países possuem representantes do setor privado no recurso administrativo em matéria fiscal, com diferentes graus de envolvimento. Ainda assim, eles não teriam o papel de destaque como têm no Brasil.
Quando há envolvimento, o processo é supervisionado por juízes de carreira, incluindo magistrados de tribunais supremos, que terão a palavra final sobre a correta aplicação e interpretação da legislação tributária. Os votos de representantes do setor privado não têm um peso decisivo.
Perez-Navarro ainda disse parecer “inadequado” que o contribuinte possa recorrer ao Judiciário quando tiver uma decisão contrária no âmbito administrativo, mas a Fazenda não.
“Se a decisão é resultado de um empate,” considerou, “isso indica que há algumas questões jurídicas desafiadoras que provavelmente merecem ser esclarecidas e resolvidas por meio de um processo judicial independente, em vez de concluir que o caso está razoavelmente resolvido e deve ser considerado definitivo”.
O que dizem os tributaristas sobre o Carf?
Luís Eduardo Schoueri, professor de Direito Tributário da Universidade de São Paulo, foi sintético ao dizer que “a OCDE não está bem informada sobre o Carf” e “não sabe que os ‘representantes’ dos contribuintes são escolhidos e nomeados pelo ministro da Fazenda”.
O professor, que também é sócio-fundador do Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados, ressaltou que os conselheiros assumem um compromisso de independência e têm deveres funcionais. Para ele, o questionamento da independência deveria valer de igual modo para os conselheiros provenientes do fisco, porque, uma vez aposentados, também vão à iniciativa privada.
“A grande pergunta é: será que o ministro compreende a importância do Carf? Se o objetivo for apenas confirmar autos de infração, então melhor não existir,” questinou Schoueri.
Hoje, a discussão está muito poluída com discursos ideológicos-partidários, afirmou Diego Diniz, sócio do Daniel & Diniz Advogados e professor da FGV Direito SP. Como ex-conselheiro do Carf, ele lembrou que a instituição é centenária e que, em primeiro lugar, funciona.
Mais que isso, declarou que o fato de a composição ser paritária, com oito conselheiros (quatro representando a Fazenda e quatro representando o setor privado), é uma das “riquezas” do Carf, porque “você traz pessoas com experiências diferentes, plurais e que convergem para um bem comum, o de construir uma jurisdição fiscal de qualidade”.
Eduardo Barboza Muniz, professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e sócio Brigagão Duque Estrada Advogados, declarou que a discussão precisa de mais profundidade.
Não há dúvida de que o macroprocesso tributário, desde o contencioso administrativo até o judicial, merece atenção e reforma, mas “a discussão não pode ser reduzida ou tratada de forma simplista como ‘voto de qualidade ou voto pró-contribuinte’,” afirmou.
“O ministro Haddad foi buscar um reforço na OCDE para a posição já posta na medida provisória, que é a retomada pura e simples do voto de qualidade. De algum modo, a carta servirá de subsídio para a discussão no Congresso, porque o Brasil passa por um momento de adesão à entidade”, mas o “Brasil é um país soberano, e as questões domésticas têm que ser examinadas por quem entende profundamente”.
Não significa que o documento deva ser ignorado, afirmou, apenas que a “carta da OCDE é só mais um elemento em um debate muito mais complexo travado há anos no Brasil”.