O contribuinte Atlas e a reforma tributária

JOTA.Info 2023-05-29

Atlas, na mitologia grega, ousou desafiar os deuses e pagou caro: foi condenado a sustentar o globo e os céus sob os ombros. Líder dos Titãs, sendo o mais forte deles, sofreu duro castigo, relegado a sustentar o peso do mundo.  

O contribuinte, diferentemente de Atlas, dificilmente seria considerado um titã e, muito menos, o elo mais forte do sistema tributário. Prova disso é que, historicamente, experimentamos reformas ou inovações tributárias sempre que o executivo, declaradamente, necessitou de novas receitas. Ou seja, sob o suposto clamor de modernização e simplificação, escorado em pleitos da iniciativa privada – ou parte dela – o Executivo sempre assim se valeu para conseguir uma maior elasticidade orçamentária pela via do aumento de receitas. 

Logo, de início, parece-nos haver um conflito aparente entre os propulsores da reforma tributária: ou buscamos eficiência e simplificação, e a reforma tributária trará ganhos arrecadatórios à médio/longo prazo, ou teremos rápido aumento arrecadatório, mas, seguramente, pagando-se o preço – bem alto – do real motor da iniciativa. Ou seja, ou a reforma tributária é meio, ou é fim. Os dois é impossível. 

De toda forma, nosso principal objetivo não é problematizar o que já vem sendo amplamente e cotidianamente problematizado, isto é, se devemos ou não levar a cabo a reforma tributária agora e tal qual se encontra. Não, nosso objetivo é alertar para um elemento fundamental de eventual reforma tributária que as senhoras e os senhores não vêm lendo diariamente. Falamos da resolução de conflitos no bojo das PEC’s 45 e 110. 

Isto porque, seus pilares passam pela não cumulatividade ampla, pela centralização arrecadatória e suposta plena segurança jurídica dos contribuintes, na medida em que os entes federativos apenas disporão do IVA após compensados/devolvidos os créditos dos contribuintes.  

Para tanto, prevê-se a instituição de entidade com personalidade jurídica tripartite que retém os recursos a serem destinados aos entes federativos, de modo a se garantir que os créditos dos contribuintes serão antes a eles devolvidos.  

No entanto, ignoram-se alguns fatos históricos, características e elementos jurídicos do nosso sistema, os quais serão abordados apenas para concluirmos pela necessidade de estabelecermos, no texto constitucional, mecanismos de resolução de conflitos federativos de natureza tributária entre os entes, mas nunca envolvendo os contribuintes.  

Brevemente, vamos a elas, para então rompermos com a cultura mais ácida e corrosiva do sistema tributário atual, isto é, da transferência para os contribuintes dos conflitos entre os entes federativos.    

Litigiosidade orgânica e sistemática entre fiscos e contribuintes

Em 2022, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o relatório “Sistematização do diagnóstico do contencioso judicial tributário: aportes iniciais”[1], cujas constatações são estarrecedoras.  

Em primeiro lugar, indicou-se que o estoque de créditos tributários inscritos em dívida ativa da União, em 7/8/2021, estava na casa dos R$ 2.654.146.162.675, sem correção.  

Em segundo lugar, constatou o referido relatório que 48,2% das decisões administrativas em matéria tributária são modificadas judicialmente. Isto indica que, a cada dois autos mantidos pelos tribunais administrativos, um é desconstituído.  

Também se constatou que cinco são os tributos que mais geram litígio tributário, sendo responsáveis por mais de 60% do acervo processual brasileiro analisado, estando três deles inseridos no epicentro da reforma tributária: PIS, Cofins e ICMS.

O problema por trás disso, como demonstrado, é a alta litigiosidade notadamente presente em ambos os polos e que conta com a instabilidade jurisprudencial para se multiplicar, afinal, como bem enfatizou o Justice Breyer, quando do seu voto no julgamento do caso Supreme Court in Franchise Tax Board v. Hyatt (5/2020):

“Cada vez que o Tribunal anula um caso, o Tribunal produz um aumento da incerteza. Anular um [caso] é incentivar os litigantes a procurar anular outros casos; é tornar mais difícil para os advogados abster-se de contestar a lei estabelecida; e é fazer com que o público fique cada vez mais incerto sobre quais casos o Tribunal anulará e quais casos vieram para ficar”.

Não há surpresa que a não cumulatividade seja problema crônico no sistema brasileiro, e que discussões relativas à restrição ao crédito — de ICMS e de PIS/Cofins — se avolumem nos tribunais administrativos e judiciais. Logo, a previsão de não cumulatividade plena no próprio texto constitucional — como vem nos alertando Gustavo Brigagão em todos os recentes congressos jurídicos — “é medida mandatória para proteger o contribuinte dos indevidos cerceamentos promovidos pelo legislador ordinário e complementar”.  

Se não for assim, a história se repetirá caso aprovada qualquer das PEC’s.  

Ausência de mecanismos de resolução de conflitos que retirem do risco os contribuintes

Reflitamos. Se dois ou mais entes se entendem competentes para tributar um mesmo fato econômico, gerando hipótese de bitributação, o conflito é resolvido entre os entes para que aquele considerado competente tenha seu direito assegurado, ou autua-se o contribuinte duas vezes e a ele cabe, desesperadamente, defender-se?

Agora vamos aproximar o exemplo da proposta desenhada e em debate no Congresso Nacional. Se se extrai da norma a não cumulatividade plena, como a do IBS, por exemplo, e um estado entende que o crédito só pode ser físico, ou que determinadas operações não geram crédito, a quem cabe se defender? O debate ficará restrito ao estado e ao órgão tripartite a ser criado ou o contribuinte será autuado, mesmo que do referido órgão receba sua restituição? 

O ponto nodal aqui é exatamente esse. Como já tivemos a oportunidade de defender nos últimos anos em sala de aula, antes do debate da reforma tributária, entendemos salutar a criação de um tribunal com competência para dirimir conflitos federativos, em vista de ausência de um no formato jurisdicional atual. E, na esteira dos novos métodos de resolução de conflitos, sustentamos a possibilidade de uma PEC com vistas a ampliar a competência do Confaz, inserindo os municípios em seu âmbito, tão somente para resolução de conflitos de competência tributária, sob o formato de tribunal administrativo ou arbitral, e cuja formação decisional poder-se-ia ser de acadêmicos ou de representantes dos fiscos, de forma paritária, com o voto de minerva reservado ao ente não integrante do litígio sob análise. 

Pois bem, já no cerne da reforma tributária, entendemos que tal competência decisional deve ser do órgão tripartite a ser criado, cuja decisão, por exemplo, em caso de discussão acerca da competência tributária ou de limites a não cumulatividade, será vinculante aos entes federativos, só podendo ser desconstituída caso afronte jurisprudência vinculante dos tribunais superiores. 

Como o órgão será tripartite, logo, com representação que reflita a integralidade da federação, não haveria que se falar em conflito de interesse.  

Outro ponto fundamental: só seria possível alterar a não cumulatividade plena após decisão do órgão, sendo vedada a possibilidade de lavratura de auto de infração antes de dada plena ciência aos contribuintes da decisão, e cuja eficácia seria ex nunc. Naturalmente, ao contribuinte seria dado o direito de se salvaguardar junto ao judiciário, mas nunca ser surpreendido com glosas, autos de infração ou negativas de regularidade fiscal por ato unilateral perpetrado pelos entes. 

Notem, que o modelo perfeito não existe. Mas, ao menos, não haveria que se falar em violação à retroatividade, não-surpresa e isonomia, já que a decisão afetaria a todos os contribuintes, e não a um, discriminadamente.  

Conclusão

O contribuinte não é Atlas e não suporta carregar o ônus do aumento arrecadatório a qualquer custo. Também não é o mais forte dos Titãs suportando batalhas intermináveis no centro das arenas tributárias. 

Também não é este um artigo acadêmico, cujos limites não permitem a melhor digressão e justificação das ideias aqui lançadas. Mas estas estão postas. E mais do que garantir com palavras, é preciso que se lancem mão de medidas eficientes de resolução de conflitos que afastem o contribuinte da sua área de risco. Se esta não é a melhor das ideias para o leitor ou leitora, que seja a fagulha que acenderá a chama desse clamor. Sem ele, aprovadas a PEC 110 e/ou 45, não tardará a voltarmos ao status quo.


[1] Sistematização do diagnóstico do contencioso judicial tributário: aportes iniciais / Conselho Nacional de Justiça; Coordenação Marcus Livio Gomes, Trícia Navarro Xavier Cabral; Organização Doris Canen, Eduardo Sousa Pacheco Cruz Silva, Manoel Tavares de Menezes Netto. – Brasília: CNJ, 2022.