STF retoma julgamento do Marco Temporal das Terras Indígenas: entenda a discussão
JOTA.Info 2023-06-07
O Supremo Tribunal Federal (STF) será o centro da atenção de povos indígenas, associações de proteção ao meio ambiente, parlamentares e representantes do agronegócio que acompanharão de perto a retomada do mais importante julgamento envolvendo terras indígenas no país. Os ministros voltarão a discutir nesta quarta-feira (7/6) a constitucionalidade da fixação do ano de 1988 – data da promulgação da Constituição – como marco temporal para a demarcação das terras indígenas.
De acordo com a tese do marco temporal, somente as áreas ocupadas ou reivindicadas pelos povos originários até a promulgação da Constituição de 1988 poderão ser consideradas territórios indígenas. O julgamento foi interrompido no dia 15 de setembro de 2021 por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Até a interrupção o placar estava empatado em 1 a 1.
O relator da ação no Supremo, ministro Edson Fachin, votou contra a tese do marco temporal — e a favor dos interesses dos indígenas e de entidades do meio ambiente —, já o ministro Nunes Marques divergiu e votou a favor da tese — em conexão com os interesses do agronegócio, dos militares e parlamentares da bancada ruralista que pedem segurança jurídica na questão agrária brasileira e não querem mais demarcações.
A discussão está no recurso extraordinário 1017365 (tema 1031) e, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 214 processos em todo o país estão suspensos aguardando a decisão do Supremo – sendo 12 no Superior Tribunal de Justiça (STJ), 199 em tribunais regionais federais e três em tribunais estaduais. Como a decisão se dará pela sistemática de repercussão geral uma tese será fixada pelo STF e os demais tribunais terão que seguir a orientação da Corte.
Ainda não está claro se o julgamento será novamente interrompido por um pedido de vista, como, por exemplo, do ministro André Mendonça, que não estava na Corte no início do julgamento e até mesmo se ele votará, uma vez que se manifestou nos autos quando era Advogado-Geral da União, no governo de Jair Bolsonaro. Existe uma ala de ministros que também avalia que seria melhor esperar o Congresso decidir o assunto. Contudo, também há uma parcela de ministros que têm demonstrado interesse em debater o tema e resolvê-lo, gerando um precedente na Corte.
Pode surgir ainda uma proposta intermediária entre os ministros para a resolução da questão, como, por exemplo, algo relativo à indenização para proprietários rurais instalados em terras indígenas. Em evento da LIDE Brazil Conference-New York, nos Estados Unidos, em novembro do ano passado, o ministro Dias Toffoli disse que, em determinadas áreas, o Estado terá que intervir para pacificar, não com a demarcação, mas com a indenização aos agricultores que podem ter as terras desapropriadas. Ele explicou que somente os lavradores poderão ser desapropriados e indenizados, “uma vez que no caso das terras indígenas não há essa indenização por conta de a Constituição ter determinado que são terras originárias”.
Enquanto as cartas ainda estão na mesa, associações do agronegócio e representantes indígenas têm ido aos gabinetes dos ministros apresentarem os seus argumentos e memoriais. Um dia antes do julgamento, lideranças indígenas como Cacique Raoni, Cacique Mairatá Kaiabi, Cacique Manágu Txicão e Cacique Bemoro estiveram no Supremo para conversar com os ministros.
O tema é tão delicado, que em 2022, o STF chegou a marcar o retorno do julgamento para 23 de abril, mas acabou desmarcando diante da crise que existia naquele momento entre o Supremo e o então presidente Jair Bolsonaro. A leitura da época foi a de que a retirada do julgamento de pauta era estratégica e sinalizava que o Supremo estaria evitando julgar temas mais sensíveis, especialmente de interesses de setores estratégicos para o governo de Bolsonaro, como o agronegócio. O processo também era visto com preocupação por militares, e uma decisão do Supremo poderia criar novos embaraços entre Forças Armadas e Judiciário.
Tese do Marco Temporal
O marco temporal foi debatido em 2009 pelo Supremo. Na ocasião, os ministros analisavam a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, em disputa desde a década de setenta. Foi com base na tese que os magistrados decidiram a favor dos indígenas, ao dizer que tinham direito ao espaço porque já estavam ali antes da promulgação da Constituição.
Na ocasião ficou estabelecido que esse entendimento sobre o marco temporal só valeria para aquele território. Ainda assim, a decisão acabou abrindo um precedente para outros julgamentos. Em 2013, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) confirmou uma decisão da Justiça de Santa Catarina de 2009, que autorizou a reintegração de posse de uma área localizada em parte da reserva indígena Ibirama-Laklãnõ, onde vivem os povos Xokleng, Guarani e Kaingang.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) recorreu da decisão e ela foi parar no Supremo, onde ganhou status de repercussão geral.
A Constituição não determina uma data específica de ocupação a ser considerada nas demarcações. De acordo com o artigo 231, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Atenção das partes interessadas
Indígenas de todo o país estão em Brasília para acompanhar de perto a questão, eles entendem que a data de 1988 é uma data arbitrária e o julgamento contra a tese do Marco Temporal tem o condão de garantir ampla proteção aos direitos dos povos nativos às suas terras.
Durante a sustentação oral, em 2021, Carlos Frederico Marés de Souza Filho, um dos advogados da Comunidade Indígena Xokleng Terra Indígena Ibiramala Klaño, parte do processo, afirmou: “O marco temporal é tão nocivo porque ele corrói e contamina o conceito que a Constituição Federal traz de defesa das sociedades de organizações sociais com culturas, crenças e línguas próprias”.
Também em sustentação oral, Luiz Henrique Eloy Amado, advogado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que atuou como amicus curiae, disse: “É preciso perguntar: se determinada comunidade não estava em sua terra na data de 5 de outubro, onde elas estavam? Quem as despejou dali? Basta lembrar que estávamos saindo do período da ditadura, onde muitas comunidades foram despejadas de suas terras. Ora com apoio, ora com aval do próprio Estado e seus agentes. Portanto, adotar o marco temporal é ignorar todas as violações às quais os indígenas foram e estão submetidos”.
Do outro lado da Praça dos Três Poderes, mais precisamente no Congresso Nacional, parlamentares ligados ao agronegócio correram contra o tempo para a aprovação do projeto de lei 490/07 que estabelece o marco temporal de 1988. A ideia era que o Congresso aprovasse o marco antes da votação no Supremo ou que pelo menos servisse para que a Corte adiasse o julgamento. O texto foi aprovado no dia 30 de maio deste ano, na Câmara, mas ainda falta a aprovação no Senado.
Segundo o texto, para serem consideradas terras ocupadas tradicionalmente, é preciso comprovação de que elas, na data de promulgação da Constituição, eram ao mesmo tempo habitadas em caráter permanente, usadas para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural. Dessa forma, se a comunidade indígena não ocupava determinado território antes desse marco temporal, independentemente da causa, a terra não poderá ser reconhecida como tradicionalmente ocupada.
O relator da proposta na Câmara, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), se manifestou para que os ministros aguardassem a posição do Legislativo antes do julgamento. Mesmo assim, o Supremo manteve o julgamento no calendário. Nos bastidores, alguns ministros se manifestaram para que a Corte esperasse uma posição do legislativo, contudo, a ministra Rosa Weber, presidente do STF, já havia prometido, no dia 19 de abril, que o julgamento voltaria no dia 7 de junho durante evento do Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas aos Povos Indígenas, no Conselho da Justiça Federal (CJF) e manteve a data.
Em fala na Câmara, durante a aprovação do projeto, Oliveira Maia afirmou que, sem o marco temporal, o país terá 1,5 milhão a mais de desempregados e uma perda significativa das exportações. “Cada índio atualmente tem direito a 390 hectares. Caso não prevaleça a nossa vitória do PL 490 e se acabe com o marco temporal, teríamos a demarcação de mais do dobro da quantidade de terras indígenas já demarcadas, e cada índio teria 790 hectares de terra”, disse o parlamentar.
A Confederação Nacional da Agricultura (CNA), também terceira interessada na ação, tem defendido o marco temporal e afirma que o mecanismo é a única interpretação constitucional que consegue conformar todos os direitos fundamentais previstos na Carta da República, buscando segurança jurídica, estabilidade das relações sociais no país e solução pacífica das controvérsias.
Defendeu ainda que a demarcação de uma terra indígena leva à extinção de outro direito, o de propriedade, sem nenhum tipo de indenização, salvo de suas benfeitorias de boa-fé.
Votos já proferidos
O ministro Edson Fachin, relator do recurso, votou pela inexistência da tese do marco temporal e, portanto, a favor do direito de os indígenas usufruírem as terras por eles ocupadas, independentemente do tempo em que estão no local. Fachin anulou a decisão do Tribunal Federal da 4ª Região (TRF4).
Em 116 páginas de voto, o relator destacou o histórico das lutas indígenas no Brasil e lembrou que os direitos das comunidades indígenas consistem em direitos fundamentais, que garantem a manutenção das condições de existência e vida digna aos índios.
O relator também refutou que o julgamento do caso da Raposa Serra do Sol, na Pet 3.388, tenha delimitado o marco temporal. Afinal, para ele, embora a decisão tenha a eficácia de coisa julgada, ela não incide automaticamente às demais demarcações de áreas de ocupação tradicional indígena no país.
Assim, em sua análise, a decisão não se limitou a reconhecer a existência de um marco temporal para a configuração da tutela constitucional à posse indígena, mas compreendeu que esse direito não se perderia quando configurada constante perda de posse praticada contra a comunidade, que impedisse essa de estar na terra tradicionalmente ocupada.
“Dizer que Raposa Terra do Sol é um precedente para toda a questão indígena é inviabilizar as demais etnias indígenas. É dizer que a solução dada para os Macuxi é a mesma dada para Guaranis. Para os Xokleng, seria a mesma para os Pataxó. Só faz essa ordem de compreensão, com todo o respeito, quem chama todos de ‘índios’, esquecendo das mais de 270 línguas que formam a cultura brasileira”, afirmou, na época em que votou.
Quanto à posse da terra, Fachin entendeu que a posse indígena sobre as terras não é a mesma posse civil, isto é, aquela em que existe um direito patrimonial particular em regra transmissível que recai sobre uma coisa ou um bem, como assim operam os direitos reais, e tem finalidade econômica, como venda, doação ou permuta. “A posse indígena, portanto, não se iguala à posse civil; ela deságua na própria formação da identidade das comunidades dos índios, e não se qualifica como mera aquisição do direito ao uso da terra”.
“A terra para os indígenas não tem valor comercial, como no sentido privado de posse. Trata-se de uma relação de identidade, espiritualidade e de existência, sendo possível afirmar que não há comunidade indígena sem terra, num ponto de vista étnico e cultural, inerente ao próprio reconhecimento dessas comunidades como povos tradicionais e específicos em relação à sociedade envolvente”, complementou.
Fachin propôs a seguinte tese:
“Os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sob os seguintes pressupostos:
I – a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
II – a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;
III – a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal;
IV – a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.
V – o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;
VI – o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência; comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
VIII – as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
IX – são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito à indenização ou ação em face da União pela circunstância da caracterização da área como indígena, ressalvado o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé;
X – há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente
Na sequência, votou o ministro Nunes Marques, discordando de Fachin. Em seu voto, o ministro se posicionou a favor do marco temporal para a demarcação das terras indígenas. O magistrado defendeu que o precedente trazido no julgamento do Caso Raposa Serra do Sol trouxe segurança jurídica para a matéria.
“É preciso ter presente que a redação do texto constitucional claramente aponta no sentido que a posse indígena deveria existir no ano de 1988, em caráter tradicional. As posses depois de 1988 não podem ser consideradas tradicionais porque isso implicaria não apenas o reconhecimento dos direitos indígenas às suas terras, mas sim o direito de expandi-las ilimitadamente para novas áreas já definitivamente incorporadas ao mercado imobiliário nacional”, afirmou o ministro durante a leitura do voto.
Posição PGR e AGU
A Procuradoria-Geral da República (PGR) manifestou-se contrária à fixação do marco temporal para demarcação das terras indígenas. Durante a sustentação oral em 2021, o procurador-geral Augusto Aras defendeu que, por razões de segurança jurídica, a identificação e delimitação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios há de ser feita no caso concreto, aplicando-se a cada fato a norma constitucional vigente ao seu tempo.
Aras argumentou ainda que o direito dos indígenas sobre suas terras é congênito e originário, independentemente de titulação ou reconhecimento formal e que a adoção da data de 1988 como referencial ignora a existência de direitos tradicionais anteriores.
A Advocacia-Geral da União (AGU) se manifestou a favor da fixação do marco temporal de 1988 para a demarcação das terras indígenas ainda na gestão de Jair Bolsonaro. A União defendeu que o STF mantenha o entendimento firmado no caso Raposa Serra do Sol em que foram observados o marco temporal e o marco da tradicionalidade para demarcação de terras indígenas. Embora a AGU venha mudando posicionamentos em ações envolvendo meio ambiente e questões indígenas no governo Lula, a posição neste caso mantém-se. O JOTA questionou a AGU se mudaria a posição, mas não recebeu retorno.