Transformação ecológica e mercado de carbono
JOTA.Info 2023-08-27
O governo federal vem anunciando o lançamento de um Plano de Transformação Ecológica como elemento central da retomada da sua agenda ambiental, impulsionado por razões políticas e econômicas. O plano, liderado pelo Ministério da Fazenda, inclui entre as suas prioridades a criação de uma taxonomia nacional para empreendimentos sustentáveis, a emissão de títulos soberanos sustentáveis e a reformulação do Fundo Cima. A primeira medida a sair do forno é a aguardada criação do mercado de carbono regulado no Brasil, com o foco do debate se organizando em torno do PL 412/22, cujo relatório foi apresentado recentemente pela senadora Leila Barros (PDT-DF) a partir de discussões com o Poder Executivo.
O Plano de Transformação Ecológica
Desde o período de transição, o governo federal vem fazendo esforços para trazer a pauta ambiental de volta à centralidade da agenda pública. Esses esforços representam uma tentativa tanto de diferenciação política em relação à administração anterior, quanto de utilizar o tema da sustentabilidade como um ativo estratégico nas relações internacionais.
Mas a centralidade da pauta ambiental também é para o governo uma nova frente de atração de investimentos, tentando sintonizar o país a um movimento global de capitais em busca de atividades como energias renováveis, infraestrutura sustentável e mercado de carbono. É nesse contexto que o governo prepara o Plano de Transformação Ecológica, anunciado pelo ministro Fernando Haddad como a “marca” do terceiro governo Lula durante o evento de lançamento do novo PAC.
Ainda não há maiores detalhes das ações do plano, mas o Ministério da Fazenda sinalizou como prioridades: (i) a criação e regulamentação de um mercado de carbono obrigatório; (ii) a elaboração de uma taxonomia nacional para empreendimentos e atividades sustentáveis; (iii) a emissão de títulos soberanos sustentáveis; e (iv) a reformulação do Fundo Clima para financiar atividades que envolvem inovação tecnológica e sustentabilidade. As mesmas medidas estão refletidas também nas medidas institucionais de “Incentivos à Transição Ecológica” do novo PAC[1].
Mercado de carbono
A criação de um mercado de carbono obrigatório foi a primeira medida a merecer a atenção do Poder Executivo. Essa é uma iniciativa de enorme importância para que o Brasil possa avançar concretamente, por meio de uma atuação conjunta dos setores público e privado, em metas do país para a compensação de emissão de gases do efeito estufa (GEE).
Diversos projetos de lei com esse objetivo já tramitam tanto na Câmara quanto no Senado. Após realizar diversas audiências públicas sobre o tema e debater o tema com o governo federal, a senadora Leila Barros apresentou um substitutivo ao PL 412/22, que segundo o seu relatório reflete o “consenso construído no âmbito do governo federal”[2] em relação ao tema.
No Brasil, diversos atores privados já operam no mercado voluntário de carbono, no qual a compra e venda de créditos de carbono ocorre de forma independente da regulamentação do governo, a partir de metas de redução de emissões e de compromissos voluntários das empresas, das organizações da sociedade civil e dos próprios cidadãos. Muitas vezes, os mercados voluntários surgem também em razão da busca por investidores que priorizam ou atuam exclusivamente com empresas que mantêm baixos índices de emissão.
O mercado de carbono é o mercado no qual ocorre a comercialização de créditos de carbono sendo que, como regra geral, 1 crédito de carbono equivale a 1 tonelada de gás carbônico (ou mesmo outros GEE) que deixou de ser emitido para a atmosfera por meio da implementação de um projeto de mitigação de emissões ou de captura de carbono. Quando uma empresa ou outra instituição possui um nível de emissão de GEE muito alto, ela pode comprar créditos de carbono com o objetivo de compensar suas emissões.
PL 412: o que diz o substitutivo?
A proposta do governo federal – expressa no substitutivo ao PL 412 – é a criação de um mercado regulado de carbono, o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), seguindo um modelo de cap and trade, também utilizado pela União Europeia no seu sistema de comércio de emissões[3]. A proposta organiza um mercado no qual são negociados dois tipos de ativo: as Cotas Brasileiras de Emissões e os Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões – a serem considerados valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei 6.385/1976 e, portanto, à regulação da CVM.
A lógica básica é que o órgão gestor do SBCE será responsável por elaborar um Plano Nacional de Alocação, que definirá o limite máximo de emissões pelo país e, consequentemente, pelos operadores, assim entendidas as instituições ou mesmo os indivíduos que controlam uma instalação ou uma fonte associada a alguma atividade emissora de GEEs e que tenha poder decisivo sobre o seu funcionamento técnico.
Uma vez aprovado o Plano pelo Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima previsto na PNMC, o órgão gestor do SBCE deverá implementá-lo, distribuindo as Cotas Brasileiras de Emissões entre os operadores, de forma gratuita ou por meio de leilões, sendo 1 cota representativa da emissão de 1 tonelada de dióxido de carbono equivalente outorgada pelo governo. Empresas operadoras passam, então, a ter uma meta obrigatória de redução de emissões.
O plano também deverá estabelecer o percentual máximo de Certificados de Redução ou de Remoção Verificada de Emissões admitidos para o cumprimento das metas obrigatórias de redução de emissões. Na prática, isso significa que haverá um limite também para as emissões excedentes de GEEs que poderão ser compensadas pelas empresas por meio de ativos decorrentes das atividades de projetos de redução ou remoção de GEEs. Créditos de carbono oriundos do mercado voluntário poderão ser reconhecidos como Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões no âmbito do SBCE, desde que sigam alguns parâmetros.
O substitutivo estabelece que os operadores das instalações e fontes que emitam mais de dez mil toneladas de CO2 por ano se enquadram entre os agentes regulados pelo SBCE – ou seja, sujeitos às obrigações do mercado regulado de carbono. Esse ponto de corte poderia ser alterado pelo órgão gestor do SBCE com vistas a cumprir as metas assumidas pelo país na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.
Nota-se que os mercados de carbono voluntário e regulado interagem de formas relevantes e, definitivamente, não são mutuamente exclusivos. Por um lado, o mercado voluntário pode adquirir maior confiabilidade graças às novas referências de padrões e metodologias para a certificação e a comercialização de créditos de carbono estabelecidas no mercado regulado. Por outro lado, devem surgir mudanças relevantes no mercado voluntário, até o momento operado sem qualquer interferência dos órgãos reguladores, em razão do enquadramento dos seus créditos de carbono[4] como ativos mobiliários regulados pela CVM, tal qual os ativos do SBCE.
Próximos passos
O substitutivo do PL 412 inaugura, de fato, as discussões do Plano de Transformação Ecológica. Por um lado, o governo federal tentará acelerar a sua tramitação para apresentar avanços concretos do país na próxima COP, em novembro. Por outro, diversos atores da sociedade civil, do setor privado e mesmo de esferas governamentais devem tentar incidir no texto para verem refletidos os seus interesses. Esse será apenas o pontapé inicial para um debate complexo que não deve se encerrar mesmo com eventual aprovação do projeto de lei, já que diversos conceitos e obrigações devem ficar para regulamentação pelo órgão gestor.
Tampouco outras iniciativas do plano – como a criação da taxonomia nacional, medida fundamental para orientar a atuação do mercado – serão tarefas simples. Todavia, endereçar esses temas complexos é essencial para criar um ambiente de clareza regulatória que seja capaz de atrair investimentos para o país.
[1] https://www.gov.br/casacivil/novopac/medidas-institucionais.
[2] Relatório PL 412/22: documento (senado.leg.br).
[3] https://climate.ec.europa.eu/eu-action/eu-emissions-trading-system-eu-ets_pt
[4] No substitutivo, créditos de carbono é o nome dado aos ativos decorrentes de projetos de redução ou remoção de gases de efeito estufa externos ao SBCE, ou seja, justamente os projetos desenvolvidos no âmbito do mercado voluntário.