PEC do Plasma é inconstitucional e injusta

JOTA.Info 2023-09-08

Tramita no Congresso Nacional a PEC 10/2022, conhecida como PEC do Plasma, que tem como primeiro signatário o senador Nelsinho Trad (PSD-MS) e conta com assinaturas de senadores de diversos partidos políticos. A proposta de emenda à Constituição propõe alteração no artigo 199 da Carta de 1988 para autorizar o comércio de plasma no Brasil. 

Atualmente o parágrafo 4º do artigo 199 da CF/88 veda expressamente qualquer tipo de comércio de órgãos, tecidos e substâncias humanas, incluindo a vedação do comércio de sangue e derivados. A origem deste dispositivo constitucional está na proteção da dignidade humana e da vida digna, tirando do comércio as partes do corpo humano que são consideradas inalienáveis, parte indissolúvel da personalidade humana, da vida digna e dos direitos individuais do cidadão.  

Evita-se, assim, que as obscenas desigualdades sociais brasileiras sirvam de base para um grande mercado de órgãos, sangue, substâncias ou partes humanas. Busca-se evitar que as pessoas que estão em situação de miséria ou grandes necessidades financeiras possam tomar medidas extremas que atentam contra sua própria dignidade e, em consequência, ferem a dignidade de todos os seres humanos no conjunto.  

Autorizar o comércio de órgãos, tecidos e substâncias humanas, inclusive do sangue e seus derivados, significa levar a objetificação do ser humano para um outro patamar de degradação, deixando as pessoas expostas a um perigoso jogo de submissão às poderosas e insensíveis “mãos do mercado”. É papel do Estado e da sociedade proteger as pessoas e evitar que alienem parte de seus corpos e de sua dignidade por alguns trocados.  

O que propõe a PEC do Plasma?

A proposta de alteração constitucional originalmente protocolada tem o seguinte texto:  

“Artigo 1º O artigo 199 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

“Artigo 199. ………………………………………….. …………………………………………………………..

4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, bem como coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados para fins de tratamento, sendo vedado todo tipo de comercialização. 5º A lei disporá sobre as condições e os requisitos para coleta e processamento de plasma humano pela iniciativa pública e privada para fins de desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de biofármacos destinados a prover o sistema único de saúde” (NR).

Além de apresentar precária técnica legislativa, o texto proposto é equivocado no mérito. A fragilidade da proposta fica evidente já em sua exposição de motivos. Com um desdém enorme, que denota desrespeito e negligência com um tema tão importante, a exposição de motivos da PEC 10 possui apenas três parágrafos, com não mais que dois argumentos, para justificar uma mudança constitucional desta envergadura:  

i) o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério Público (MP) solicitaram ao Ministério da Saúde que fosse equacionado o problema causado pelo desperdício de milhares de bolsas de plasma no Brasil. Desde 2017, segundo o TCU e o MP, foram perdidos 597.975 litros de plasma no País, o que equivale ao material coletado em 2.718.067 doações de sangue e; 

ii) com a pandemia, a coleta de plasma apresentou queda em nível mundial, inclusive nos Estados Unidos da América e em alguns países da Europa que são os maiores coletores do mundo.

A PEC tramita no Senado e atualmente encontra-se em discussão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), sob relatoria de Daniella Ribeiro (PSD-PB). Em seu relatório, a senadora não viu inconstitucionalidade nem injustiça na proposta, e apresentou um texto substitutivo com o seguinte teor:  

“Artigo 199. ………………………………………….. …………………………………………………………..

4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de pesquisa e transplante, pesquisa e tratamento, bem como coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização, com exceção ao plasma, na forma do §5º. 5º A Lei disporá sobre as condições e os requisitos para a coleta, o processamento e a comercialização de plasma humano pela iniciativa pública e pela iniciativa privada, para fins de uso laboratorial, desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de medicamentos hemoderivados destinados a prover preferencialmente o SUS. 6º No âmbito do SUS, a iniciativa privada atuará em caráter complementar à assistência em saúde, mediante demanda do Ministério da Saúde, cumpridas as normas regulatórias vigentes” (NR).

No substitutivo, a relatora procurou amenizar alguns possíveis efeitos nefastos do futuro mercadão de plasma, sem atentar ao principal: a PEC é inconstitucional e injusta. A proposta será votada em breve na CCJ do Senado, e espera-se que esta Comissão seja capaz de identificar a flagrante inconstitucionalidade do texto, rejeitando a PEC e encerrando a sua tramitação.  

Iniquidade e violação de direitos individuais fundamentais

Há décadas o Brasil discute o que fazer com o plasma excedente que não consegue ser utilizado no país. O plasma é a matéria-prima para a produção de substâncias terapêuticas essenciais como albumina, imunoglobulinas, concentrados de fatores de coagulação (fator VIII, fator IX etc.) e cola de fibrina, todas fundamentais para o tratamento de diversas enfermidades, a exemplo de doenças hematológicas autoimunes, cirrose, hemofilia, câncer, aids, imunodeficiência genética e queimaduras graves. O plasma em si, por sua vez, é indicado no tratamento de pacientes com distúrbios de coagulação, púrpura trombocitopênica trombótica e outros. 

Desde 2000 o Ministério da Saúde já havia identificado o problema e iniciado a adoção de medidas para sua solução, organizando um planejamento para utilização do plasma excedente que pode ser sintetizado da seguinte forma:  

  • 1) utilizar o plasma excedente no Brasil como matéria para produção dos hemoderivados comprados pelo país, em complexa operação com as indústrias multinacionais que produzem essas substâncias, que passariam a produzir utilizando o plasma brasileiro;
  • 2) exigir das indústrias que vendem plasma para o Brasil que, além de produzir os hemoderivados com o plasma brasileiro, também transferissem para a tecnologia de produção, para que o país adquirisse os conhecimentos tecnológicos necessários para produzir esses produtos; e
  • 3) investir na indústria nacional para que o Brasil seja capaz de processar o plasma e produzir os hemoderivados que o SUS necessita.

A partir daí, grandes investimentos foram feitos no país, tanto para a utilização do plasma brasileiro na produção dos hemoderivados que importamos das indústrias estrangeiras quanto na fabricação de derivados do plasma, por meio da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), criada em 2005.

Também se investiu para viabilizar o desenvolvimento de tecnologia recombinante, destinando recursos para pesquisa por instituições científicas brasileiras. Todavia, por motivos variados, até hoje não se conseguiu produzir hemoderivados no Brasil de forma eficaz, valendo destacar: subfinanciamento da Hemobrás; negligência com sua implantação; descontinuidade das ações a cada governo trocado; dificuldades na introdução das tecnologias necessárias no Brasil. 

No entanto, a solução para o problema apontado pelo TCU não é mudar a Constituição e autorizar o comércio do plasma, mas sim continuar de forma responsável a política já traçada para solucionar o problema há anos: aproveitar o plasma da melhor forma possível, por meio do uso do plasma na produção dos hemoderivados comprados pelo Brasil, inclusive com contratos de transferência de tecnologia para que o país busque sua autonomia; investir na capacidade de inovação e produção interna de hemoderivados, valorizando a Hemobrás para que ela cumpra sua missão institucional e investindo na criação de novas indústrias de produção de hemoderivados no Brasil. No mérito, portanto, a PEC do Plasma já se mostra equivocada. 

Mas os vícios da iniciativa são de ordem mais profunda. A CCJ do Senado, para fazer valer seu nome, deve atentar para o fato de que a PEC é inconstitucional e injusta.  

Inconstitucional pois viola cláusulas pétreas da Constituição, indo em sentido contrário ao que determinam dispositivos constitucionais que fixam direitos e garantias individuais fundamentais. A PEC do Plasma viola, ao mesmo tempo, o artigo 1º, III, da CF, que define como fundamento da República Federativa do Brasil a proteção da dignidade humana; os arts. 5º, 6º e 196, que definem a vida digna e a saúde como direitos fundamentais a serem protegidos pelo Estado; e o próprio parágrafo 4º do artigo 199, que possui a natureza de garantia do direito fundamental à saúde e à vida digna.  

A PEC do Plasma é também injusta porque pode aprofundar as iniquidades do país, na medida em que permitirá a exploração mercadológica de um bem jurídico (sangue e plasma) inalienável que configura parte dos direitos fundamentais e de personalidade. A doação de sangue é um ato de solidariedade e deve ser incentivada. Transformar o sangue em mercadoria irá alterar uma cultura solidária e humana de doação para inseri-la na cultura capitalista de mercado. É grande o risco de desestimular as doações, encarecer os produtos finais e, pior ainda, no final das contas reduzir ainda mais o nível de sangue e plasma disponível para uso no SUS.  

A PEC é injusta também com a política pública que está em andamento, uma política que busca o caminho correto, mas que ainda busca sustentabilidade institucional e financeira para dar conta do desafio colocado. Por exemplo, desde a Portaria 1.710/2020 já está previsto que o plasma excedente do uso hemoterápico, produzido pelos serviços que compõem a Rede Nacional de Serviço de Hemoterapia, será destinado à Hemobrás para fins do uso industrial na produção de medicamentos hemoderivados.

Ou seja, a adequada destinação do plasma excedente das doações de sangue, de modo a se evitar o desperdício, depende apenas da implementação da política já em andamento, com a qualificação e certificação dos hemocentros, investimento na Hemobrás e em novas indústrias que ajudem o Brasil a produzir internamente, com o plasma nacional, os hemoderivados que o SUS precisa.  

Chama atenção que a Constituição tenha que tratar de sangue e plasma, mas a história está mostrando que os constituintes originários acertaram ao colocar no texto constitucional a garantia fundamental que veda o uso comercial do sangue e seus derivados. Não se pode regredir na proteção de direitos fundamentais, razão pela qual esta PEC deve ser rejeitada.