Herança progressista de Rosa Weber enfrenta reação legislativa

JOTA.Info 2023-09-25

No final de seu período no topo do Judiciário brasileiro, a ministra Rosa Weber buscou deixar uma herança ousada no Supremo Tribunal Federal (STF): refutação da tese do marco temporal, descriminalização da posse de quantidades limitadas de maconha e voto em defesa do aborto até o terceiro mês de gestação.

São temas que tratam de grupos negligenciados, protegendo indígenas, população carcerária e mulheres. Somados à defesa de direitos de grupos homossexuais, ao equiparar ofensas homofóbicas e injúria racial, reforça tendência do Supremo para pressionar por avanços na defesa de direitos sociais de minorias.

Esses casos podem ser vistos como exemplos do chamado “ativismo judicial”, pois abrem espaço para interpretação jurídica para além dos limites explícitos da lei, em casos socialmente relevantes, mas que envolvem temas polêmicos. Por isso, seriam de difícil aprovação legislativa. Ao contrário de muitos congressistas, temerosos de perder votos ao se aproximar de bandeiras arriscadas, como aborto ou drogas, juízes podem tratar desses temas e ocupam o vácuo deixado pelo Poder Legislativo.

Essa era a argumentação de um estudo sobre judicialização publicado por um docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 2009. O nome do autor é Luís Roberto Barroso, atual vice-presidente do STF, que deve assumir a liderança da corte com a aposentadoria de Weber, nos próximos dias.

Em anos recentes, entretanto, a agenda do topo do Judiciário esteve dominada por longos processos criminais envolvendo figuras políticas de grande relevância em acusações de corrupção – como no caso da Lava Jato. Mais recentemente, o STF passou a enfocar a proteção da própria corte e a democracia brasileira de ataques que questionavam a reputação dos ministros e, assim, contestavam a legitimidade do nosso regime constitucional.

Evidentemente, o tribunal não deixou de lado temas socialmente relevantes na última década: durante a pandemia da Covid-19, o sistema de saúde nacional encontrou no STF um dos seus principais defensores. Todavia, com tempo e capital político restritos, muitas pautas progressistas foram sistematicamente adiadas, como o próprio julgamento sobre drogas, sacrificado no altar da inconveniência política durante a presidência de Dias Toffoli no STF.

Hoje, sem o atrito praticamente diário de ameaça existencial enfrentado sobretudo no período 2019-2022 e de demandas excessivas na fiscalização do Executivo, o Judiciário consegue retomar uma pauta propositiva. Em suma, com a sensação de que a República volta aos trilhos, o STF sai da defensiva democrática e parte novamente para o ataque em questões sociais com base nos direitos assegurados pela Constituição de 1988.

A contraofensiva já se arma novamente, desta vez no Congresso. Se o ativismo judiciário é resposta à omissão legislativa, senadores ameaçam retomar a tramitação de projetos de lei que divergem das decisões recentes do STF, incluindo aquelas sobre povos originários, porte e consumo de drogas e direito ao aborto.

O domínio de grupos conservadores no Senado e na Câmara pode garantir os votos, mas há dúvida sobre viabilidade de leis que tratam de temas que confrontem a jurisprudência definida pelo STF. Abre-se, portanto, espaço para a contestação nessa mesma corte de leis que venham a ser aprovadas contra o ativismo judicial. Entretanto, no campo político, essa disputa entre Judiciário e Legislativo já garante mais combustível para a máquina de ódio bolsonarista mobilizar sua militância online e nos aeroportos ao redor do mundo, atacando ministros que defendam pautas que se distanciam da tradição conservadora.

O atual julgamento sobre o aborto é consequência lógica de dois outros casos: a liberação de pesquisa com células-tronco embrionárias em 2008 e a autorização de interrupção de gravidez de feto com anencefalia em 2012. O primeiro caso foi pioneiro em abrir espaço para consulta com especialistas em audiência pública, discutindo a definição do início da vida e sua proteção pela legislação brasileira. Poucos anos antes, em 2000, o Supremo recebia a primeira mulher a ocupar o cargo de ministra da corte, Ellen Gracie, posteriormente acompanhada por Cármen Lúcia, em 2006, e substituída por Rosa Weber, em 2011. Tal como Gracie, as duas últimas também fizeram parte da maioria no julgamento de aborto e anencefalia.

Tanto os julgamentos sobre células-tronco quanto o sobre anencefalia foram agora citados no voto de Weber sobre o aborto e podem reforçar a interpretação de que a vida tem o início de sua proteção jurídica com a formação do sistema nervoso, visto que no Brasil seu término legal também se dá pela cessão irreversível do funcionamento do cérebro.

Não é de surpreender que a aposentadoria de Weber pressione a aprovação de temas sociais emergentes; composições futuras da corte com representatividade mais limitada podem ter menor preocupação ao julgar casos polêmicos como esse. A herança progressista de Weber só reforça a tese de que avanços na representatividade na cúpula do Poder Judiciário melhoram a sensibilidade dos tomadores de decisão sobre como julgar questões socialmente relevantes.

Talvez reste esperar, nos próximos anos, nova confluência entre contexto político propício (ou menos hostil) e liderança do STF disposta a tratar de temas que demandam respostas do Judiciário. Por ora, fica evidente que as demandas apresentadas à iminente presidência de Barroso serão proporcionais à elevada expectativa deixada pela herança ousada de Rosa Weber.