O futuro da responsabilidade tributária das plataformas digitais no Brasil

JOTA.Info 2023-09-27

A possibilidade de responsabilização tributária dos intermediários digitais tem sido um tema controverso desde o início da expansão da economia digital no Brasil, que vem crescendo continuamente nos últimos anos. Contudo, esse tema ganhou especial relevância com a potencial reforma do sistema tributário proposta pela PEC 45/2019, que viabiliza a imputação dessa responsabilidade.

Seja marketplace, plataformas digitais, ou plataformas eletrônicas de distribuição de serviços, a perspectiva de os fiscos garantirem a adequada arrecadação de milhares de micro e pequenos contribuintes apenas a partir da operação de poucas empresas de tecnologia é, no mínimo, convidativa às Autoridades Fiscais.

Embora a redação atual do nosso ordenamento tributário não esteja preparada para fixar o vínculo entre intermediários digitais e os fatos geradores dos tributos devidos por seus contratantes, foram feitas diversas tentativas de imputação de responsabilidade tributária às plataformas, geralmente em nome da eficiência tributária e da economia administrativa.

As iniciativas mais relevantes nesse sentido advieram dos estados[1], que instituíram inicialmente normas buscando ter acesso exclusivamente às informações acerca das transações e, logo em seguida, fixar a extensão da participação das plataformas nas operações por elas intermediadas, o que consequentemente delimitaria a sua responsabilidade pelos tributos devidos.

Entretanto, algumas dessas normas foram consideradas inconstitucionais ou ilegais, dado que a atribuição transversa de responsabilidade extrapola os limites traçados pelos artigos 124 e 128 do Código Tributário Nacional (CTN), além de violar os princípios constitucionais da capacidade contributiva[2] e da segurança jurídica[3]. Afinal, no sistema atual, não há regra matriz de responsabilização que reconheça o interesse comum das plataformas no inadimplemento tributário dos fornecedores contribuintes.

Apesar de o tema ser incipiente no Brasil, ele não é inédito em outros países. Em âmbito internacional, Autoridades Fiscais estrangeiras enfrentaram desafios semelhantes na tentativa de delimitação da obrigação das plataformas digitais de reter e remeter informações e tributos em nome de seus usuários. Em um primeiro momento, essas medidas visavam endereçar a tributação de bens de pequeno valor importados de plataformas digitais estrangeiras, posto que o amplo acesso dos marketplaces às informações essenciais das transações comerciais seria uma solução eficaz para garantir o recolhimento dos tributos incidentes sobre o consumo.

As reações apresentadas pelos fiscos internacionais variaram entre dois caminhos interessantes. Em algumas respostas, os governos se valeram de normas vigentes de políticas tributárias e buscaram alcançar a tributação da economia digital por meio do regime tributário preexistente, prestigiando a estabilidade. Em outros casos, os governos abraçaram inovações conceituais para instituir políticas tributárias que promoveram mudanças na dinâmica de tributação, fundamentadas na eficiência e equidade[4].

Ambas as abordagens têm méritos, e a experiência internacional de aplicação da responsabilidade tributária às plataformas digitais traz relevantes diretrizes para a condução do debate no Brasil.

Na abordagem pioneira da União Europeia, datada de 2015, foi adotado o conceito de “vendedor presumido”, que consiste na ficção jurídica de que as operações de vendas digitais se desdobram duas transações idênticas e simultâneas tributadas pelo Imposto sobre Valor Agregado (IVA)[5]. Assim, a legislação presume que as intermediárias digitais adquirem os bens ou serviços de seus fornecedores (i.e., os sellers da plataforma) e os revendem aos usuários finais, tornando-as responsáveis pelo recolhimento do IVA na primeira etapa[6].

Nos Estados Unidos, em 2018, a Suprema Corte fixou precedente no caso “South Dakota v. Wayfair, Inc.”, legitimando a cobrança do Imposto sobre Vendas (Sales Tax) sobre compras feitas de vendedores de outros Estados, ainda que a empresa vendedora não tenha presença física naquela jurisdição. Desde então, os Estados norte-americanos vêm progressivamente implementando o pacote de regras relativas ao “Marketplace Facilitador” para possibilitar a exigência do IVA no estado de destino de vendas em meio digital.

É relevante pontuar que a maior parte dessas legislações estaduais dos Estados Unidos foram introduzidas apenas após o recesso econômico ocasionado pela pandemia da Covid-19, em que as Autoridades Fiscais notaram a urgência na adequação de suas regras tributárias à realidade do e-commerce para preservar a sua arrecadação[7].

Tentando conciliar os diferentes encaminhamentos conferidos internacionalmente, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) propôs um modelo de responsabilização das plataformas digitais baseado na presunção de aquisição e revenda simultânea online, semelhante ao aplicado pelos europeus[8]. Portanto, nesse escopo, as plataformas são inteiramente obrigadas a apurar, recolher e remeter o IVA devido na transação de venda intermediada, bem como por qualquer outra obrigação acessória imposta pelas Autoridades Fiscais.

Independentemente do modelo, regras semelhantes às descritas acima foram reiteradamente replicadas por outras jurisdições, e hoje estima-se que cerca de 70 países preveem regras específicas para a atribuição de responsabilidade tributária a plataformas digitais[9].

A experiência internacional com a regulamentação da economia digital demonstra que as regras tributárias devem ser adaptáveis, permitindo a adequação das normas existentes conforme o surgimento das inovações tecnológicas. As regras aplicáveis às plataformas são completamente diferentes daquelas que observamos há dez anos, e certamente serão ainda mais diferentes em dez anos. Sempre que as regras fiscais se consolidam, emergem tecnologias que novamente impulsionam a revisão do regime tributário. Ou seja, na economia digital, não são as regras fiscais que moldam os modelos de negócios das plataformas digitais, mas são as plataformas que moldam o direito tributário internacional[10].

No Brasil, esse progresso deverá ser inevitavelmente acompanhado – e cuidadosamente implementado – na reforma tributária em discussão. No âmbito do PEC 45, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) poderá ser exigido de qualquer pessoa que concorra para a realização, execução ou pagamento da operação, ainda que estrangeiro, a ser futuramente fixado em Lei Complementar (artigo 156-A, §3º).

Nesse sentido, em que pese a PEC 45 estabeleça apenas a norma programática que delega a regulamentação à Lei Complementar, há um evidente movimento no que diz respeito ao alinhamento das regras fiscais brasileiras às práticas adotadas internacionalmente para a responsabilização de plataformas digitais.

Portanto, ainda que o conteúdo da PEC 45 possibilite um novo paradigma do tratamento das plataformas digitais no cenário tributário brasileiro, entendemos que qualquer responsabilização a ser imposta por eventual Lei Complementar deverá ser balizada pelos demais princípios constantes em nossa Constituição Federal, Código Tributário Nacional e sobretudo para garantir a prevalência da isonomia, capacidade contributiva, segurança jurídica e não-confisco.

A reforma tributária é, sem dúvida, uma oportunidade de atualização do ordenamento tributário às realidades da economia digital. O Brasil deverá debater o modelo de tributação e fazer suas escolhas também em relação ao cumprimento de obrigações acessórias e regras de responsabilidade. Esse aspecto é particularmente essencial no contexto brasileiro, visto que o Banco Mundial já colocou o nosso país em primeiro lugar no ranking de horas empregadas no compliance tributário, em que as empresas nacionais gastam, em média, 2.038 horas anuais para apurar seus tributos[11].

Na discussão da regulamentação do tema por Lei Complementar, será fundamental acompanharmos as experiências internacionais e, termos em mente, que qualquer que seja a responsabilidade atribuída às plataformas, que essas novas regras não imponham custos exorbitantes ou entraves ao desenvolvimento dos negócios dessa atividade no Brasil.

Para tanto, é fundamental que o legislador pondere a efetiva participação das plataformas digitais nas operações intermediadas, para que a sua responsabilidade pelos tributos seja proporcional às remunerações recebidas por suas atividades, evitando-se assim a perpetuação de um compliance tributário desalinhado à capacidade contributiva das empresas.


[1] A maior parte desses casos foi observado após a assinatura do Convênio ICMS 106/17, no âmbito do Confaz.

[2] Que, como definido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Recurso Extraordinário 603.191, deve guardar relação com a efetiva participação do responsabilizado na operação e o seu acesso às receitas auferidas por terceiros, “não se lhe podendo impor deveres inviáveis, excessivamente onerosos, desnecessários ou ineficazes”. (RE 603191, Relatora Ministra ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, Repercussão Geral, julgado em 1.8.2011)

[3] Também sob a sistemática de Repercussão Geral, o STF fixou o entendimento que “o preceito do art. 124, II, no sentido de que são solidariamente obrigadas “as pessoas expressamente designadas por lei”, não autoriza o legislador a criar novos casos de responsabilidade tributária sem a observância dos requisitos exigidos pelo art. 128 do CTN, tampouco a desconsiderar as regras matrizes de responsabilidade de terceiros estabelecidas em caráter geral pelos arts. 134 e 135 do mesmo diploma”. (RE 562.276, Relatora Ministra ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, Repercussão Geral, julgado em 3.11.2010)

[4] HAYASHI, Andrew. Taxing Digital Platforms. Virginia Journal of Law & Technology: Vol. 26, Essay 3. Primavera de 2023. p. 12-13.

[5] Com o contínuo avanço da economia digital, essas normas foram subsequentemente complementadas pela aprovação de um pacote de medidas destinado a regulamentar a incidência do IVA sobre operações em e-commerce, datado de 5.12.2017. Devido às dificuldades práticas na implementação do novo sistema, essas regras só passaram a valer efetivamente em 1.7.2021. Para mais informações, confira: Council Directive (EU) 2017/2455 of 5 December 2017 amending Directive 2006/112/EC and Directive 2009/132/EC as regards certain value added tax obligations for supplies of services and distance sales of goods, OJ L 348, 2017, p. 7-22; Council Regulation (EU) 2017/2454 of 5 December 2017 amending Regulation (EU) No 904/2010 on administrative cooperation and combating fraud in the field of value added tax, OJ L 348, 2017, p. 1-6; Council Implementing Regulation (EU) 2017/2459 of 5 December 2017 amending Implementing Regulation (EU) No 282/2011 laying down implementing measures for Directive 2006/112/EC on the common system of value added tax, OJ L 348, 2017, p. 32-33.

[6] Essa responsabilidade por substituição é dispensada apenas caso a plataforma possa comprovar que não estabelece os termos e condições gerais para a consecução das vendas (embora essa exceção seja raramente aplicada).

[7] MANESS, Ryan. Forty-Two States Have Now Adopted Marketplace Sales Tax Collection Laws. Multistate: 18.6.2020. Disponível em: https://www.multistate.us/insider/2020/6/18/forty-two-states-have-now-adopted-marketplace-sales-tax-collection-laws

[8] OECD (2019), The Role of Digital Platforms in the Collection of VAT/GST on Online Sales, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/e0e2dd2d-en.

[9] DESCHATRES, Iman. At your service: broadening a digital platform’s scope for VAT/GST liability. 26.4.2023. Disponível em: https://www.linkedin.com/pulse/your-service-broadening-digital-platforms-scope-iman-desch%C3%A2tres/

[10] HAYASHI, Andrew. Idem.

[11] Como destacado pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) ao analisar o relatório Doing Business do Banco Mundial de 2017, no artigo “Custos de conformidade à tributação no Brasil”, de 11.5.2017. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.ccif.com.br/wp-content/uploads/2020/07/NT_Custos-de-conformidade_v2.pdf