O transporte aéreo de passageiros e a judicialização
JOTA.Info 2023-12-14
Recentemente, na discussão relativa aos altos preços das passagens aéreas no Brasil, foram apresentados diversos motivos por parte das companhias aéreas para o aumento. Além dos tradicionais, como custo do combustível, oscilação cambial e problemas na produção, houve um que me chamou a atenção, trazido pelo presidente da Latam, Jerome Cadier, em entrevista ao Panrotas. Ele indicou que um dos motivos para a alta dos preços é que as empresas têm um alto custo associado a demandas judiciais e estimou que este chega a R$ 1 bilhão para as três principais companhias aéreas brasileiras: Latam, Azul e Gol.
Neste tema, em junho de 2022, Valéria Starling e Nicole Villa publicaram no JOTA o artigo “A origem da judicialização desproporcional no mercado de transporte aéreo no Brasil”, um artigo pautado pelo patrocinador Abear (Associação Brasileira das Empresas Aéreas) com uma bem fundamentada abordagem das indenizações por danos morais. Houve outros artigos patrocinados pela mesma associação com igual qualidade. A proposta deste texto é trazer uma perspectiva para esta questão numa perspectiva do Law & Economics e da racionalidade consumerista que afeta a questão.
O risco e a atividade empresarial
Inicialmente, é preciso indicar que a atividade empresarial está sujeita a riscos. No caso do serviço de transporte aéreo, os riscos, principalmente os operacionais nas décadas de 1950 e 1960, eram extremamente altos e foram mitigados ao longo do tempo com o amadurecimento do setor e a busca por soluções coletivas, como, por exemplo, a diretriz adotada pelo National Transportation Safety Board dos EUA na análise de acidentes.
Um dos problemas afetos ao risco é que este nem sempre é individualizado, podendo em diversos casos ser compartilhado por vários agentes do setor. A fim de mitigá-lo, existe a necessidade de uma atuação coletiva. Por exemplo, em um acidente aéreo envolvendo um avião de grande porte, existe o dano direto afeto às vítimas, assim como o prejuízo direto financeiro e afeto à imagem da empresa que operava o voo. No entanto, existem também prejuízos coletivos financeiros e de imagem suportados por todo o setor aéreo, como o aumento do custo do seguro dos equipamentos e da operação ou a perda de potenciais passageiros que optam por outro modal por medo.
Os investimentos coletivos na segurança de voo trouxeram benefícios para toda a sociedade e, principalmente, para todas as companhias aéreas e agentes do setor. Maior segurança, maior eficiência e crescimento. Os custos desses investimentos em segurança foram pagos pelas companhias aéreas, pelos fabricantes e demais agentes, e indiretamente pelos clientes dessas companhias, que contrataram os serviços de transporte de passageiros e cargas.
Dessa forma, na hipótese desse “novo problema” da judicialização, é preciso ter em mente que esse custo vai impactar na coletividade. Tanto para aqueles que utilizam o serviço e pagam mais caro pelas passagens, como também para aqueles cidadãos que não podem utilizar tal transporte porque ele está muito caro. O serviço caro é ruim para o ambiente de negócios, para o turismo e para as mais diversas atividades. Para piorar, trata-se de um custo que não traz benefícios diretos para a coletividade pois em sua maioria de tratam de indenizações.
Por que as pessoas judicializam?
Partindo do pressuposto de que o ser humano age racionalmente, mas nem tanto, como indicado pelas pesquisas em behavioral economics. É difícil imaginar que um número significativo de usuários do transporte aéreo acorde pela manhã pensando em demandar judicialmente uma empresa de transporte aéreo sem qualquer motivo. É necessário reconhecer que existem pessoas/consumidores que não estão satisfeitas com algum ponto da relação contratual estabelecida com a companhia aérea e, no limite da insatisfação, buscam o Judiciário.
A essência da judicialização está associada a uma lide, ou seja, uma discordância em relação a uma questão, visões diferentes acerca de uma situação. Nas relações sociais e consumeristas a discordância, ou nesse caso, a insatisfação, é algo ordinário para as quais existem as mais diversas soluções.
Se as ruas da minha cidade são esburacadas, isso tende a influir no meu voto. Se o meu vizinho faz uma festa, liga-se para o síndico para que ele arbitre uma solução. E, existe ainda a inação, o ato de “deixar para lá”, ou seja, houve uma questão que pelos mais variados motivos o cliente/consumidor prefere ignorar o problema e seguir com sua vida.
Os passageiros de um serviço de metrô ou de trem urbano que todo dia está lotado, não cumpre horário, tem ar-condicionado falho, etc., têm motivos legítimos para demonstrar a sua insatisfação com o serviço de transporte prestado, eventualmente até mesmo levando tal insatisfação ao Judiciário, mas não se verifica uma judicialização em um número significativo dessa questão. Dessa forma, é necessário ter em mente que a judicialização não é o único caminho, mas tão somente um dos caminhos possíveis.
Se existe uma ação, existe um problema
Partindo da ideia de lide, e da existência de um problema, significativo, e a perspectiva de que a escolha pela judicialização possa gerar o reconhecimento de um direito do autor da ação que não foi sanado na relação contratual por outros meios. No setor de telefonia existe o exemplo da Telemar/Oi no Rio de Janeiro. Tal empresa por muitos anos figurou como a principal ré em Juizados Especiais no Rio de Janeiro, imagina-se que não conseguia atender as expectativas de seus clientes e a insatisfação era tal que a judicialização era o caminho.
Posteriormente, com a criação na Anatel de um sistema de mediação para monitorar demandas e obrigações regulatórias, a atuação do Ministério Público na tutela coletiva, assim como medidas adotadas pela empresa no atendimento das demandas dos clientes, houve uma queda no volume de ações judiciais. Em 2018, a Telemar caiu para a quarta posição no ranking de demandas em juizados especiais cíveis do TJRJ sendo ré em 16.506 ações judiciais que envolviam tanto a telefonia fixa como a móvel.
O setor de telefonia continua bastante demandado junto ao Judiciário e ao Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, mas é preciso reconhecer que houve um avanço. A título de curiosidade, no referido ranking do TJRJ de 2018, na lista dos 30 principais demandados, a Azul não aparece, a Gol aparece na 20ª posição com 2.441 demandas e a Latam em 30º com 1.235 demandas.
A importância do ano de 2018 diz respeito ao fato de serem números anteriores à pandemia da Covid-19, que teve um forte impacto na vida de todos nós e no setor aéreo, possivelmente impactando no volume de demandas judiciais. Dessa forma, entendo que as pessoas judicializam por dois principais motivos. O primeiro é pelo fato de que em dado momento sentiram que o seu contrato de transporte aéreo não foi cumprido a contento, houve expectativas que não foram atendidas, assim como o descumprimento de algum ponto da relação contratual. O segundo é que a empresa aérea quando contatada não ofereceu uma solução adequada para a questão e o consumidor passa a enxergar o Judiciário como um caminho viável e adequado para arbitrar a questão.
Como as empresas aéreas tratam seus clientes
É notório que houve um processo de transformação do setor aéreo mundial que impactou também o Brasil. A desregulação e o surgimento de novos modelos de negócio impactaram significativamente o mercado. Um ponto positivo dessa mudança é que o transporte aéreo de passageiros cresceu de forma intensa nos últimos 30 anos e modelos de negócio que buscavam simplificar o serviço e diminuir custos e preços de passagens permitiram o aumento do volume de passageiros e da rede. O mercado cresceu.
Seguindo uma tendência mundial de corte de custos, as diversas empresas aéreas fecharam lojas de atendimento ao público e reformularam canais de comunicação. Foi priorizado o uso do atendimento telefônico, em muitos casos através de empresas terceirizadas com funcionários despreparados. Recentemente, houve a adoção de contatos por chat com filtros que utilizam ferramentas de inteligência artificial que tem dificuldade para atender demandas mais complexas.
Em aeroportos ao redor do mundo também houve uma terceirização do atendimento onde se percebe que a função do funcionário terceirizado é restrita, questões mais complexas são encaminhadas para outros canais. De uma forma geral percebe-se que a qualidade do atendimento ao cliente caiu, o atendimento se torna cada vez mais impessoal e de baixa qualidade.
É necessário ressaltar a grande diversidade no perfil dos clientes. Existem clientes que pagaram R$ 200 em uma passagem promocional e existem também clientes que pagaram alguns milhares de reais em uma passagem internacional, e ainda o cliente que paga valores medianos, mas se desloca constantemente. Todos esses clientes, com perfis e demandas diversos, tem expectativa de serem bem atendidos, em especial quando algo inesperado surge, tanto da parte do consumidor, como da companhia aérea.
Se o cliente é bem atendido e na hipótese de um problema técnico ou de força maior é apresentada uma solução satisfatória, tende a não haver uma demanda judicial, e caso ela venha o ocorrer o Judiciário perceberá uma atitude oportunista pelo consumidor. Por outro lado, soluções insatisfatórias, muitas das quais ignoram direitos do consumidor, tendem a encontrar no Judiciário um árbitro neutro que reconheça sentido na demanda e estabeleça um justo dever de indenizar.
A meu ver, parte da solução para o custo da judicialização está associada a um trabalho preventivo e ao mesmo tempo uma estratégia da empresa na solução de potenciais “conflitos” e na qualidade do atendimento ao cliente. Melhor do que gastar em custos afetos a judicialização, seria investir em um atendimento de qualidade ao consumidor.
Conclusão
Diante do exposto, entendo que a solução passa pela criação de mecanismos no âmbito interno das empresas de medidas que busquem soluções amistosas e eficientes para as questões que lhe são apresentadas cotidianamente, sistemas mais eficientes e um treinamento mais adequado de seus colaboradores, em especial do SAC e demais atendimentos pré-voo.
É necessário que a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), como órgão regulador e neutro, reflita mais sobre a perspectiva do usuário/consumidor do transporte aéreo em suas ações. Em que pese os avanços da Resolução 400, de 2016, é preciso que a perspectiva consumerista esteja presente em uma eventual revisão da resolução, como também em outras medidas regulatórias, evitando-se o risco de captura por parte do regulador. Cabe avaliar se a adoção por parte da Anac de instrumentos de mediação podem ser um caminho para o tratamento do problema.
Espera-se que uma atividade tão importante continue a crescer e que cada vez mais cidadãos possam usufruir do transporte aéreo, sem os custos da judicialização e com tarifas mais módicas.