A reforma tributária recém-nascida e o caminho para a justiça de gênero

JOTA.Info 2023-12-24

A reforma tributária nasceu após um longo período de gestação. Um marco aguardado há décadas, é recebida como um presente de Natal, porém com sentimentos mistos. Por um lado, há aplausos das esferas governamentais e empresariais pelas recentes mudanças constitucionais; por outro, críticas técnicas e especializadas apontam para desafios significativos. Afinal, a emenda constitucional é a chave que abre portas para uma reforma verdadeira que se dará por meio da elaboração de leis complementares, das quais espera-se efetividade e máximo respeito aos princípios tributários democráticos.

No cerne desta discussão está a questão da justiça fiscal. A reforma, embora prometa simplificação e transparência, ainda deixa em aberto como abordará a regressividade tributária, um problema típico da tributação indireta e que aflige desproporcionalmente os mais vulneráveis – atingindo sobremaneira as mulheres.

Neste contexto, a abordagem em relação às questões de gênero é notável. Após muitos esforços acadêmicos para integrar o tema nas discussões tributárias no Brasil, pela primeira vez, a igualdade de gênero é incorporada como marcador explícito na avaliação de benefícios fiscais: a reforma autoriza a redução de até 100% das alíquotas incidentes sobre produtos de saúde menstrual, medida que reflete uma demanda há muito negligenciada.

Esta mudança simboliza um reconhecimento importante dos direitos das mulheres no campo tributário. No entanto, é fundamental garantir que tal medida se traduza em benefícios tangíveis para as consumidoras e não seja absorvida pelos varejistas, como observado em experiências internacionais, conforme destacamos em artigo anterior.

Outra novidade que atravessa as questões de gênero é a criação da Cesta Básica Nacional de Alimentos, atenuante da tributação relativa ao mínimo existencial – muito embora ainda não saibamos quais produtos serão beneficiados com prometida isenção fiscal. A medida é benéfica, mas pode ser insuficiente sem políticas complementares relacionadas aos produtos indispensáveis ao cuidado, além do cashback, que oferece suporte adicional às famílias, muitas chefiadas por mulheres – assunto ainda nebuloso que também está a cargo das surpresas do futuro, pois deverá ser modulado por lei complementar.

O Brasil não é o único a adotar o sistema de cashback. Inspirações não faltam. Na América Latina, o Uruguai, por exemplo, opera um programa de governo que oferece cashback aos consumidores cadastrados. Adicionalmente, o governo isentou completamente o IVA para faixas de baixa renda e para gastos de até 2 mil pesos uruguaios com o cartão do Banco de Previdência Social do Uruguai.

Na Bolívia, o cashback do IVA é permitido para indivíduos com renda mensal até 9 mil bolívares. O programa abrange uma ampla gama de beneficiários, incluindo trabalhadores informais, mas não é aplicado a insumos essenciais. Os elegíveis recebem a devolução diretamente em suas contas bancárias.

Ainda, no Canadá, o reembolso do IVA é feito em valores fixos, variando de acordo com a alíquota regional. Todos os cidadãos têm acesso ao benefício, com valores adicionais para casados e por cada filho menor de 19 anos.

Outra séria preocupação decorrente da reforma tributária e que afeta diretamente a vida das mulheres é a exclusão de armas e munições do imposto seletivo. Recentemente, o Brasil registrou um aumento nos casos de feminicídios, com 722 ocorrências no primeiro semestre de 2023, um aumento de 2,6% em comparação com o mesmo período de 2022. Este número é o maior registrado desde 2019 para um primeiro semestre, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Esses dados sugerem uma correlação preocupante entre o acesso facilitado a armas de fogo, promovido nos últimos anos, e a escalada de violência contra as mulheres.

A reforma, portanto, é apenas o início de um processo mais amplo. A elaboração das leis complementares será o campo de batalha para assegurar um sistema tributário mais justo e equitativo. Este é um momento crítico para moldar o futuro da tributação brasileira dos próximos anos.

As mudanças prometidas devem ser acompanhadas de perto para garantir que não sejam apenas simbólicas, mas efetivas e transformadoras. Como sociedade, devemos manter uma vigilância constante neste puerpério e lutar por um sistema tributário que promova verdadeiramente a igualdade de gênero e a justiça social. A reforma é um ponto de partida, não o destino. Por isso, não devemos nos contentar com avanços superficiais; buscamos uma transformação real e abrangente que promova a justiça fiscal e social para todos.