Decisão do STF pode gerar novas dúvidas sobre ICMS

Consultor Jurídico 2021-05-10

Em 17 de abril de 2021, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, declarou a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar 87/1996 (Lei Kandir), fixando posição de que não incide ICMS na transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte[1] (Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC nº 49).

O voto do ministro-relator Edson Fachin na ADC ratificou a jurisprudência da Suprema Corte (e.g., Tema 1099, ARE 1255885) sobre a matéria, fixando a seguinte posição: o “mero deslocamento entre estabelecimentos do mesmo titular, na mesma unidade federada ou em unidades diferentes, não é fato gerador de ICMS, sendo este o entendimento consolidado nesta Corte”.

Muito embora a decisão não inove a jurisprudência sobre o tema, novas dúvidas podem decorrer desse entendimento. Por exemplo, qual estabelecimento fará jus ao crédito pelas entradas das mercadorias ou insumos? Seria o estabelecimento que transferiu a mercadoria, já que efetivamente recebeu tais insumos/mercadorias em operação de circulação anterior?

Ou o estabelecimento que recebe a mercadoria em transferência, uma vez que este dará sequência na etapa de circulação e se verá sujeito ao recolhimento do imposto da sua transação, mantendo a não-cumulatividade?

A questão não comporta grandes problemas em se tratando de estabelecimentos pertencentes a uma mesma unidade da federação. Eventual encontro de contas, centralização de apuração do imposto ou a transferência de valores a crédito ou débito poderia solucionar a questão.

No entanto, no caso de operações interestaduais o problema ainda padece de solução. Imaginemos operação interestadual em que haja transferência de mercadoria de um estabelecimento situado em um estado para outro situado em estado diverso.

Nesse caso, os créditos, se não transferidos à unidade de destino, serão represados na unidade remetente, restando todo o débito do imposto na unidade de destino.

Ou seja, o contribuinte teria créditos represados em uma unidade da federação não compensáveis com débitos que remanesceram com estabelecimento situado na outra unidade.

Do ponto de vista dos estados, também há um impasse, na medida em que o estado da unidade transferidora suportaria integralmente o crédito do imposto, ao passo que o imposto devido seria arrecadado pelo estado do estabelecimento de destino da mercadoria.

Tais transferências de carga tributária poderão causar ainda mais desequilíbrio nas relações econômicas entre os próprios estados, bem como nova onda de controvérsias entre estados e contribuintes.

Algumas ações são possíveis, como por exemplo, a adoção de legislações limitando os créditos ou determinando o estorno destes no caso de mercadorias transferidas. O fundamento para tal expediente poderia vir de leitura restritiva do art. 155, §2º, II, “b”, da Constituição Federal, visto que as saídas isentas ou não incidentes acarretam a anulação do crédito relativo às operações anteriores[2].

Tal procedimento traria enormes repercussões econômicas e tributárias, ferindo as transações com a cumulatividade do imposto. Neste caso, nova frente de litígio se instalaria. A discussão seria em relação à saída efetuada em transferência e sua implicação com o dispositivo citado (o inciso I já determina a não cumulatividade e expressamente menciona “operação relativa à circulação de mercadoria”).

Outra providência imaginável seria a adoção de “nota fiscal de transferência” que indicasse tratar-se do crédito da operação anterior para que a unidade recebedora da mercadoria em transferência pudesse valer-se do crédito, expurgando-o da unidade transferidora.

A despeito disso, estas questões devem ser consideradas, ainda, à luz da jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido da autonomia de cada estabelecimento para o cumprimento das obrigações, ainda que pertencentes a uma mesma empresa[3].

Nesse contexto, seria necessário conciliar esse entendimento histórico acerca da autonomia dos estabelecimentos e a possibilidade de movimentar créditos entre esses estabelecimentos (o que, em regra, no caso do ICMS, não vinha sendo possível).

Há, ainda, outras questões igualmente não respondidas e que seguramente causarão impactos na operacionalização e cumprimento de obrigações do ICMS.

A primeira questão é referente à substituição tributária quando há convênio ou protocolo para o recolhimento do imposto em outra unidade da federação quando a primeira operação, a chamada operação própria, se der entre duas unidades do mesmo titular.

Imagine-se a seguinte operação: o Fabricante do “Estado A”, responsável por retenção da substituição tributária de mercadoria a ser remetida ao “Estado B” o faz, sendo a primeira operação uma transferência para sua filial naquele estado.

Em não havendo tributação na transferência, na operação própria não haverá ICMS a destacar e, deste modo, o imposto devido em relação às operações subsequentes será todo carreado ao “Estado B”, uma vez que não haverá imposto da operação própria a ser abatido, diferente do que ocorre até hoje.

Isto trará como consequência uma diminuição da arrecadação do “Estado A” e incremento no “Estado B”. Além disso remanescerá no “Estado A” toda discussão acerca dos créditos que foram tomados pelo fabricante neste mesmo estado (estorno, transferência, impedimento do seu crédito, etc.).

Outro impacto econômico que pode decorrer da decisão do STF em tela são os benefícios fiscais concedidos por estados à margem do Confaz e que foram validados pela Lei Complementar 160/2017 e Convênio ICMS 190/17.

Em operações interestaduais, o benefício concedido acaba sendo suportado pelo Estado destinatário das mercadorias, visto que este deve aquiescer com crédito referente às mercadorias ingressadas em seu território e cujo valor não foi inteiramente pago na origem em razão do benefício concedido.

A concessão de tais benefícios, como é sabido, é fator relevante no  deslocamento de empresas para diversas unidades da federação visando o aproveitamento de tais benefícios, montando novas cadeias de logística e distribuição. Há toda a sorte de arranjos com vendas, transferências, estabelecimentos matrizes e filiais estabelecidos para esta realidade.

Nestes casos poderá haver uma mudança significativa em termos de custos e vantagens tributárias aos detentores de tais benefícios fiscais. Não havendo incidência do imposto nas operações de transferência das mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, a vantagem que o benefício trouxe poderá se revelar inócua, pois a transação poderia não permitir o reconhecimento da tomada de crédito, considerando-se que não haveria tributação na operação anterior.

Isso pode impactar diretamente as decisões de alocação de empresas no território nacional e respectivos arranjos produtivos.

Tais questões são apenas algumas que se apresentam de modo mais evidente, mas, ante à complexidade das relações sob as quais vige o ICMS, é provável que outras serão levantadas.

Não há solução fácil a todos estes pontos, que demandarão esforços tanto dos contribuintes quanto das administrações tributárias para fazer frente à realidade que se apresenta.

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[1] Artigos 11, §3º, II e 12, I, no trecho: “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, §4º da Lei Complementar 87/1996.

[2] “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(…)

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

(…)

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

(…)

II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:

(…)

b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;”

[3] O Resp 1355812/RS, também julgado sob o manto dos recursos repetitivos, reafirma, em orbiter dictum, a autonomia dos estabelecimentos para o cumprimento de suas obrigações.