A nova Lei de Licitações e os programas de integridade
Consultor Jurídico 2021-07-05
A todos aqueles dispostos a negociar com o Poder Público – e o volume desses negócios sempre torna essa possibilidade atraente –, a Nova Lei de Licitações (NLL, a Lei n. 14.133/2021) apresenta uma série de inovações que exigirão adaptações no âmbito interno das empresas. Buscando conferir maior segurança jurídica e racionalidade às contratações, ao mesmo tempo em que também pretende assegurar maior participação dos concorrentes no planejamento dos contratos, ganhos de celeridade nos processos e alocações de riscos mais eficientes nas seleções, não surpreende que a NLL seja bastante extensa e traga diversas novidades.
Nesse sentido, a incorporação das figuras do diálogo competitivo (art. 32) e do procedimento de manifestação de interesse (art. 81) busca viabilizar o apoio do particular na estruturação da própria contratação pretendida, permitindo que a Administração se valha da experiência e do conhecimento técnico-científico da iniciativa privada para a identificação e a elaboração de soluções para suas necessidades. Naturalmente, isso demandará uma atenção ainda mais especial das empresas na condução dessas tratativas prévias junto à Administração. De forma semelhante, a preferência pela realização de licitações de forma eletrônica (art. 17, § 1º), a centralização das seleções no Portal Nacional de Contratações Públicas (art. 174) e a inversão das fases de habilitação e de julgamento das propostas (art. 17, inc. I a VII) atendem à necessidade de mais agilidade, publicidade e competitividade nos certames, na mesma medida em que demandam ajustes nos procedimentos até então adotados pelas empresas para participarem das licitações.
Para além dessas inovações e de outras tantas que merecem aprofundamento específico, chama a atenção, na mesma linha de outros subprodutos legislativos editados após a Operação Lava Jato, a presença dos Programas de Integridade em diferentes pontos da NLL, desempenhando quatro funções distintas. Esses programas, também conhecidos como Compliance, ganharam notoriedade com a edição da Lei Anticorrupção (Lei n. 12.846) em 2013 e agora retornam no art. 156 da Nova Lei de Licitações para desempenhar sua função mais conhecida, de fator atenuante das sanções aplicáveis às infrações administrativas tipificadas na lei (art. 155). Tal função se assemelha à previsão da Lei Anticorrupção que permite à empresa obter reduções, nas respectivas sanções aplicadas pela prática de ato lesivo à Administração Pública, se for comprovada a existência de mecanismos internos de integridade (art. 7º, inc. VIII, regulamentado pelos arts. 41 e 42 do Decreto 8.420/2015).
Entre as sanções cominadas às infrações administrativas da NLL está a declaração de inidoneidade do infrator que tenha agido para frustrar os objetivos do processo licitatório. Com isso, a empresa declarada inidônea fica impedida de contratar com a Administração Pública até que seja promovida a sua reabilitação. Nesse contexto aparece uma segunda função do Programa de Integridade, que será uma condição à reabilitação do licitante que tenha sido condenado pela Lei Anticorrupção ou que tenha apresentado declaração ou documentação falsa exigida para o certame, ou durante a licitação ou a execução do contrato (NLL, art. 163, parágrafo único). Assim, sem o compliance implementado, não será possível a reabilitação da empresa perante o Poder Público. Nesse particular, a Portaria n. 1.214/2020 da Controladoria-Geral da União já estabelecia como requisito à concessão de reabilitação a necessidade de comprovação, pelo interessado, de que foram adotadas medidas que demonstrem a superação dos motivos determinantes da declaração de inidoneidade, “o que inclui a implementação e a aplicação de programa de integridade” (art. 2º, inc. III). Uma terceira função a ser considerada é que o candidato que já tiver o compliance consolidado terá preferência no caso de empate de propostas, pois o art. 60, inc. IV, da NLL, estabelece que o desenvolvimento de programa de integridade será um dos critérios de desempate utilizados no julgamento das propostas.
Finalmente, a quarta e mais relevante função se apresenta no art. 25, pelo qual o programa de integridade será uma exigência indispensável para a execução dos contratos celebrados com a Administração Pública. Segundo o art. 25, § 4º, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor nas contratações de grande vulto, o que deve ocorrer dentro de 6 meses a contar da celebração do contrato. Esta norma é complementada pelo art. 6º, inc. XXII, considerando contratações de grande vulto aquelas cujo valor estimado supera R$ 200 milhões.
Esse dispositivo tem sido alvo de críticas por exigir a implantação do programa a posteriori, ou seja, apenas para o vencedor do certame, e não como um requisito de habilitação, exigível de todos os participantes. Em que pese reconhecermos que somente elevados standards de ética negocial permitirão a construção de um mercado competitivo mais justo, leal e menos agressivo, parece-nos que a lei foi adequada na disciplina conferida à matéria. Primeiro, porque do fato de uma empresa não possuir um sistema formal de integridade não resulta a conclusão de que ela não opere dentro de padrões de integridade; pensar o contrário seria a presunção da má-fé, algo desde logo inadmissível. Segundo, ir ao ponto de transformar o compliance numa imposição legal (obrigatória e universal) às empresas poderia implicar restrições à livre concorrência, porque a implantação do programa tem um custo que impacta de forma diversa empresas de diferentes portes, de modo que, enquanto as maiores absorvem esse custo facilmente, as menores se veem obrigadas a repassá-lo ao preço final dos seus bens e serviços, com consequente diminuição das suas chances de competitividade no mercado. Assim, exigir o requisito apenas do vencedor do certame, como condição para a execução do contrato, parece dentro do razoável e do possível, e segue uma estratégia de incentivos que as leis vem desenvolvendo para fomentar a integridade no meio empresarial.
Nas contratações com a União, estimamos que a exigência terá mínimo impacto em termos concretos, pois a lei estabeleceu que o termo “grande vulto” aplica-se aos contratos com valores acima de R$ 200 milhões e a realidade é que o próprio mercado já exige o compliance de qualquer empresa com essa capacidade de entrega.
Aliás, entre contratantes privados já é quase um standard que, numa negociação de valor considerado expressivo, o possível contratado receba um extenso formulário de “due diligence”, que é uma espécie de auditoria de integridade, como meio de assegurar ao contratante que as expectativas criadas serão cumpridas sem riscos desnecessários. Isso é um efeito do compliance já atuante nas empresas.
No entanto, outros impactos devem ser considerados. A NLL é uma lei de normas gerais, o que permite aos Estados e Municípios o ajuste desses dispositivos segundo as suas especificidades. “Grande vulto”, enquanto conceito jurídico indeterminado, é uma categoria sensível ao contexto de aplicação, e as leis que temos visto surgir com a exigência do compliance sugerem que no âmbito estadual e municipal haverá uma grande movimentação no mercado para a institucionalização desses programas dentro das empresas. De fato, pode-se tomar alguns exemplos: a Lei n. 7.753/2017 do Estado do Rio Janeiro estabeleceu a exigência de programa de integridade às empresas que celebrem compromissos com aquele Estado em valor acima de 1,5 milhão para obras e serviços de engenharia e R$ 650 mil para compras e serviços; a Lei n. 15.228/2018 do Rio Grande do Sul aplica a mesma exigência aos vencedores em contratos em valor superior a R$ 3,3 milhões para obras e serviços de engenharia e R$ 1,43 milhão para compras e serviços; o Distrito Federal (Lei n. 6.112/2018) adotou limite global de R$ 5 milhões para fixar a obrigatoriedade dos programas de integridade; a Prefeitura Municipal de Porto Alegre estipulou-a nos contratos acima de R$ 5 milhões anuais ou acima de R$ 2,5 milhões para contratos com prazo de validade superior a 180 dias. Esses casos tendem a se multiplicar.
Esses contratos com o Poder Público abrem para um grande número de empresas uma valiosa oportunidade para a ampliação dos seus negócios, por isso o ponto aberto à reflexão desses empresários já não é se implementam ou não o programa, e sim se vale a pena esperar o resultado do certame para implementá-lo, considerando que o vencedor tem até 6 meses a contar da contratação para suprir a exigência. Por um lado, se decidir esperar, já sai perdendo eventual preferência decorrente do critério de desempate, previsto no art. 60, inc. IV da nova lei. Por outro lado, poderá enfrentar dificuldades durante a execução do contrato, pois qualquer um que atue na área sabe que seis meses são insuficientes para implementar um sistema real e efetivo de compliance. Conquanto o § 4º do art. 25 remeta à futura regulamentação, já é possível uma análise preditiva do tipo de avaliação a ser feita para comprovar tanto a existência quanto a efetividade do sistema. A mera consideração da existência do compliance já implica a implementação de diversos itens, tais como: metodologia para avaliação e gestão de riscos, indicação de compliance officer, adoção de código de conduta, treinamentos, sistematização de auditorias, implantação de canal de reportes e medidas antirretaliação (proteção do whistleblower), protocolos para a investigação de irregularidades, para a aplicação de sanções disciplinares e para as diligências prévias em relação a terceiros, isso tudo para listar apenas os componentes básicos. Já a avaliação de efetividade resultará de complexa análise quantitativa e qualitativa dos indicadores de desempenho em compliance e de como o valor da integridade está incorporado nas práticas concretas e rotineiras da organização. Em que pese muitas inconsistências possam ser verificadas apenas com base nos números da empresa, a efetividade nem sempre é fácil de mensurar e demonstrar, mas é ela que vai interessar quando os controles internos falharem e o programa de integridade tiver que cumprir sua função de mitigar as sanções aplicáveis à pessoa jurídica no caso de alguma irregularidade.
É claro que as funções de um programa de compliance transcendem, e muito, às funções desempenhadas na Nova Lei de Licitações, pois a disseminação do valor integridade já é um fim em si mesmo na construção de uma sociedade mais justa. Mas é preciso ressaltar que as empresas que vivem a ética em suas rotinas operam com mais segurança e confiança, e experimentam um tipo de eficiência alcançável por poucos agentes econômicos, decorrente da própria autoestima dos colaboradores e fornecedores, que se projeta no aumento de produtividade e na valorização reputacional da empresa. São fatores que impactam na qualidade e na inovação, agregando valor aos bens e serviços que a empresa oferece ao mercado. Esses são resultados mensuráveis que apenas se somam àquilo que é mais relevante e intangível aos dirigentes de uma organização, afinal (quem tem, sabe), ainda não inventaram nada melhor para a qualidade de vida do que as noites bem dormidas.
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