Suprema Corte dos EUA reinicia ano judiciário com pauta bombástica
Consultor Jurídico 2021-10-04
Reinicia-se hoje o ano judiciário na Suprema Corte dos EUA e, até o seu final, em junho de 2022, o tribunal enfrentará pauta repleta de temas que despertam fortes emoções na sociedade americana, em questões que são típicas de “judicialização da política”, já que também costumam frequentar os debates durante disputas eleitorais entre republicanos e democratas.
Para além das controvérsias puramente jurídicas, a pauta da Suprema Corte prevê para os próximos meses julgamentos de processos que envolvem assuntos sensíveis e divisivos na opinião pública americana: há casos “explosivos” envolvendo aborto, controle de armas, relações entre estado e igreja, status de Porto Rico na federação, além de outros potenciais recursos que ainda poderão ser admitidos para esse ano judiciário, envolvendo ações afirmativas e registro eleitoral.
Além do conteúdo bombástico dos processos na fila de julgamentos, este será o primeiro ano judiciário em que a trinca de juízes nomeados por Donald Trump (Gorsuch, Kavanaugh e Barrett) atuará full steam, pois a juíza Amy Barrett assumiu no final de 2020 com o barco em movimento e teve poucas oportunidades de mostrar por que águas navegará. Com seis juízes nomeados por presidentes republicanos e de tendência presumivelmente conservadora, muitos liberais estão temerosos de que, a despeito do papel moderador que vem sendo exercido pelo Presidente Roberts, essa nova maioria possa reverter precedentes há muito estabelecidos, notadamente Roe v. Wade, que descriminalizou o aborto em 1973.
Justamente por isso, o mais aguardado de todos os julgamentos certamente é Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, cuja sessão de arguição (semelhante à nossa sustentação oral) está marcada para o primeiro dia de dezembro vindouro. Certamente veremos, nesta ocasião, milhares de manifestantes “pro-life” e “pro-choice” se enfrentando diante das escadarias de mármore da Suprema Corte. Em questão, estará a constitucionalidade de uma lei estadual do Mississipi, que proibiu abortos a partir da décima quinta semana de gestação. A Procuradora que representa o governo daquele Estado sulista pediu de forma expressa que a corte promova o “overruling” do caso Roe v. Wade.
A Suprema Corte terá diante de si, aparentemente, três opções. Declarar a inconstitucionalidade da lei estadual, mantendo na íntegra o precedente Roe; reconhecer a constitucionalidade da lei estadual, revendo parcialmente Roe (já que a decisão estabelece critérios diferentes para cada um dos trimestres de gestação), ou – aquela que seria a solução mais radical – simplesmente revogar Roe in totum e permitir que leis estaduais limitem até que período a gestação pode ser interrompida.
Creio que é improvável que essa terceira solução seja adotada, pois isso poderia implicar sério abalo à estabilidade do sistema de precedentes e ao prestígio institucional do judiciário, mas não descartaria a opção mediana, que mesmo assim representará uma verdadeira revolução judicial no tema, e uma inquestionável vitória para os conservadores americanos. Se isso ocorrer, é muito provável que o ex-presidente Donald Trump tente faturar em cima do julgamento, alegando que isso só foi possível em razão das indicações que fez para a corte durante seu mandato.
Outro caso que vem despertando intensa controvérsia está relacionado à Segunda Emenda da Constituição, que cuida do polêmico direito de manter e portar armas. Esse é, classicamente, um tema difícil e controverso em que a Suprema Corte não gosta de atuar, preferindo deixar sua deliberação aos poderes legislativos estaduais ou, quando muito, manter o que as cortes inferiores decidem. Para se constatar essa repulsa ao tema, basta ver que são raríssimos os casos de Segunda Emenda registrados na história jurisprudencial da Suprema Corte.
Em 2008, no entanto, a Suprema Corte decidiu, por apertada maioria de cinco votos a quatro, no caso District of Columbia v. Heller, que leis locais não poderiam restringir o direito de cidadãos manterem armas em casa. Agora, em New York State Rifle & Pistol Association v. Bruen a questão a ser decidida diz respeito ao suposto direito dos cidadãos de portarem armas em espaços públicos, tema que, incrivelmente, jamais foi levado à deliberação da corte constitucional, e o fato de que ela o tenha admitido já diz muito da propensão dos juízes conservadores em se pronunciarem sobre a tormentosa questão. O caso deverá ser arguido no início de novembro.
Outro tema que desperta paixões no debate público americano diz respeito às relações entre Estado e igrejas. Os Estados Unidos são um país profundamente religioso, porém politicamente construído sob o dogma algo radical da laicidade do estado, cujo símbolo mais evidente é a metáfora de Thomas Jefferson a respeito do “muro de separação” que deve haver entre um e outro.
A Suprema Corte construiu ao longo de décadas delicada cadeia de precedentes para afirmar em Lemon v. Kurtzman (1971) um complexo (e criticado) standard de hermenêutica constitucional (conhecido como “lemon test”), para determinar em que situações leis que beneficiavam entidades ou atividades religiosas poderiam ser ou não consideradas “neutras”. O caso envolvia uma lei estadual que permitia ao erário pagar despesas de escolas privadas, muitas delas confessionais, que integravam em caráter suplementar o ensino público fundamental. A lei foi então considerada inconstitucional por permitir um excessivo envolvimento do Estado com a Igreja.
Agora vem à pauta da Suprema Corte um caso bastante semelhante, mas não exatamente igual. Em Carson v. Makin, será examinada a constitucionalidade de uma lei estadual do Maine que expressamente exclui escolas religiosas de um programa público de concessão de bolsas de estudo. Há expectativa de que a Corte possa considerar a norma estadual discriminadora, a exemplo do que ocorreu no ano judiciário passado com o caso Fulton v. City of Philadelphia. E, para alguns, dada a atual composição, poderia até mesmo haver uma revisão do controverso “lemon test”, o que, sem dúvida, representaria uma vitória para o movimento conservador americano.
Um assunto sempre mal resolvido no constitucionalismo americano diz respeito ao status de Porto Rico na federação. As aquisições extracontinentais dos Estados Unidos, iniciadas ao final do século XIX e acentuadas com a guerra hispano-americana (1898), sempre renderam intensos debates constitucionais sobre o status dos habitantes dos territórios conquistados (antes que eles fossem incorporados como Estados, como ocorreu com o Havaí).
Em uma série de casos conhecidos como “insular cases” no início do século XX, a Suprema Corte adotou linguagem claramente racista para negar cidadania àqueles que viviam nas possessões de ultramar, chamando-os, por exemplo, de “raças alienígenas” incapazes de viver sob “princípios anglo-saxões”.
Embora leis federais hoje tenham estendido o status de cidadania aos porto-riquenhos, eles não podem votar nas eleições presidenciais, não possuem representação no Senado e não têm direitos a certos benefícios federais. Uma família que tem um filho com deficiência permanente está processando o governo dos Estados Unidos sob a cláusula de igual proteção das leis da Décima Quarta Emenda, alegando que a negativa na concessão de um benefício federal para pessoas com deficiência (Supplemental Security Income – SSI) é inconstitucional. O governo Biden sustenta que a benesse custaria dois bilhões de dólares anuais e deveria ser ampliada pelo Congresso, mas não pelo judiciário. O caso é importante para definir se os porto-riquenhos continuarão a ser considerados cidadãos de segunda classe pelo governo federal.
Há também casos que, ainda não apreciados quanto a sua admissibilidade, têm alto potencial para entrar na pauta de julgamentos de 2021/22, insuflando ainda mais a pauta politicamente contenciosa desse ano judiciário.
O mais notório desses é o processo em que se discute a constitucionalidade do programa de ações afirmativas da prestigiosa Harvard University e que poderá representar a reversão do confuso precedente Regents of the University of California v. Bakke (1978), que de uma forma tortuosa permitiu políticas especiais para promover o ingresso de minorias no ensino superior americano. Espera-se também que cheguem à corte casos de leis capciosas de registro eleitoral que vêm sendo editadas em Estados de maioria legislativa republicana, as quais têm dificultado o alistamento de pobres e negros no cadastro de eleitores. Há vários processos deste tipo na Justiça federal que poderão chegar à mais alta corte do judiciário americano, com reflexos diretos no debate político do país.
A maior parte desses casos possivelmente será julgada somente no final do ano judiciário, em junho, quando são divulgados ao público os “casos difíceis”, o que ocorre pela demora dos debates e pelo tempo despendido na construção de maiorias. Ou seja, essas decisões sairão já quando estiver em curso uma polarizada campanha eleitoral das mid-term elections, na qual a disputa pelo controle do Senado promete ser das mais candentes. Não resta a menor dúvida que a Suprema Corte jogará mais fogo nessa gasolina.
new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();