Deliberação parlamentar e processo legislativo

Consultor Jurídico 2021-11-03

Qual é a importância das palavras no processo legislativo? O processo de produção normativa tem como resultado final uma legislação, construída a partir de um procedimento repleto de diversos fatores políticos, sociais e institucionais e marcado por uma deliberação ampla sobre problemas que suscitam a atuação do Poder Legislativo para a criação da norma, sobre as alternativas possíveis para a resolução dos problemas detectados e, claro, sobre todas as implicações políticas envolvidas na tramitação de uma proposição normativa.

Recentemente, algumas situações destacaram-se na Câmara dos Deputados pelo potencial prejuízo que podem levar ao debate parlamentar e à atuação da oposição, influindo negativamente em questões procedimentais do processo legislativo.

Em maio deste ano, foi apresentado o Projeto de Resolução nº 35/2021. Dentre outras propostas, o projeto buscava impedir que os partidos que não superam a cláusula de barreira possam indicar um parlamentar para orientar votação a cada projeto deliberado. Além disso, também objetivava reduzir o tempo de fala para encaminhamento da votação por parte dos líderes. Alguns dos aspectos pertinentes aos efeitos do referido Projeto de Resolução foram discutidos aqui mesmo no JOTA.

Nas últimas semanas, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), adotou um expediente pouco usual e bastante controverso na sessão que debatia a PEC 5/2021, que trata da composição do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e dá outras providências. Na oportunidade, Lira divulgou o relatório final da PEC apenas após o início da sessão do dia 14 de outubro.

Ademais, o presidente da Câmara enviou a proposta diretamente ao plenário, mesmo sem parecer da Comissão Especial destinada a discutir a matéria, conforme dispõe o art. 34 do Regimento Interno. O argumento utilizado pelo deputado é que havia se esgotado o tempo regimental para que a comissão profira seu parecer.

Independentemente das interpretações possíveis sobre o Regimento e sobre a validade ou não das manobras adotadas pelo presidente da Câmara, não há dúvidas de que tais iniciativas contribuem para um esgarçamento do ambiente deliberativo, dificultando a compreensão da própria sociedade a respeito de proposições que tramitam no Congresso Nacional. Isso porque o contexto parlamentar é formado justamente por agentes em posição de representação política, que debatem, manifestam opiniões e atuam na defesa de determinados interesses de grupos ou setores da sociedade.

Nesse sentido, Jeremy Waldron considera ser necessário “observar o que o conflito, o tumulto e os números podem fazer pela liberdade e não ficar facilmente desconcertados com a atmosfera barulhenta, fedorenta ou repugnante da assembleia popular”[1]. A expressão de perspectivas diversas sobre uma proposição de lei, por exemplo, não pode ser compreendida como um aspecto que apenas tornaria o processo legislativo mais moroso e menos eficiente.

Na verdade, “o processo de positivação do Direito deve refletir a complexidade e a pluralidade social, estando aberto aos conflitos decorrentes das disputas entre múltiplas preferências e constituindo-se em efetivo locus das lutas democráticas”.[2] Da mesma forma que a legislação aplica-se a uma sociedade heterogênea, plural e diversa, espera-se que o processo que lhe dê origem leve em conta esses aspectos em seu âmbito procedimental e sobretudo nas discussões sobre os projetos, para que o maior número de vozes seja ouvido, contemplando melhor a pluralidade dos setores afetados pela criação de uma norma.

As vozes presentes no processo legislativo, contudo, não dizem respeito tão somente à participação e à representação na produção normativa, mas também ao grau de legitimidade da norma em razão de toda a argumentação que sustenta seu processo criativo. Por isso, vale destacar que a legitimidade da legislação não se exaure nas questões relativas ao funcionamento do sistema democrático e suas formalidades, sendo extremamente importante a justificação da norma[3], inclusive na oralidade tão presente no debate parlamentar.

Ocorre que a análise da justificativa no processo legislativo não pode se dar apenas a partir dos argumentos favoráveis, como se o legislador pudesse ser compreendido enquanto instituição, enquanto um corpo homogêneo, de modo que toda a argumentação parlamentar pode ser considerada importante, inclusive aquela empreendida pela oposição. Para José Luis Martí, por exemplo, o dissenso não é um obstáculo à deliberação, mas uma de suas condições essenciais, já que não pode haver debate se não existem preferências divergentes e desacordos a serem resolvidos[4].

Assim, a utilização do tempo de fala no Congresso pode ser considerado um dos instrumentos regimentais legítimos para que a oposição possa atuar e alcançar modificações nos projetos em debate. A supressão de instâncias de discussão, a redução do tempo de fala e da própria oportunidade de manifestação no parlamento, então, tornam-se fatores de grave prejuízo à qualidade da deliberação e à legitimidade que se espera do processo legislativo e das normas dele decorrentes. Tal legitimidade está ligada ao fato de que os legisladores devem se valer “da liberdade subjetiva de escolher os motivos para aprovar leis segundo a sua autonomia privada ou a possibilidade de chegar a um consenso racionalmente motivado sobre a legitimidade da lei”[5].

Diferentemente do que ocorre em conversações ordinárias, a discussão no Parlamento em torno de uma proposição não ocorre para que se evitem os desacordos e se chegue sempre ao consenso. Nesse contexto, o diálogo e o conflito são muito mais caracterizadores do ambiente democrático do que a decisão que se toma no processo legislativo[6].

Assim, é preciso valorizar uma cultura de proteção ao dissenso e ao debate, já que o Parlamento, em sua função de legislar, não pode abdicar da pluralidade de vozes e de uma participação efetiva. Por mais que os tempos atuais de maior efemeridade e rapidez nas comunicações façam com que nos acostumemos a essa dinâmica ágil da linguagem, no processo legislativo a legitimidade, em geral, é muito mais importante que o tempo de tramitação, salvo exceções de urgência. Por isso, o debate parlamentar deve ser resguardado não só como um importante aspecto procedimental do processo legislativo, mas também como um pilar da própria democracia.

new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();


 

[1] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 41.

[2] SANTOS, Flávia Pessoa; SOARES, Fabiana de Menezes. A incorporação do dissenso legislativo e seu papel na justificação da lei: condições para a advocacy parlamentar. In: SOARES, Fabiana de Menezes; KAITEL, Cristiane Silva; PRETE, Esther Külkamp Eyng (org.). Estudos em Legística. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2019. p. 239.

[3] OLIVER-LALANA, Ángel Daniel. Rational Lawmaking and Legislative Reasoning in Parliamentary Debates.  In: WINTGENS, Luc J.; OLIVER-LALANA, Ángel Daniel (ed.). The Rationality and Justification of Legislation: Essays in Legisprudence. Heidelberg: Springer, 2013. p. 135-184.

[4] MARTÍ, José Luis. La República Deliberativa. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, 2006.

[5] DURÃO, Aylton Barbieri. Direito e democracia em Habermas. Argumentos, Fortaleza, ano 7, n. 14, p. 22-35, jul./dez. 2015. p. 30.

[6] WALDRON, Jeremy. Derechos y desacuerdos. Traducción José Luis Martí y Águeda Quiroga. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, 2005.