Juízes da Suprema Corte dos EUA trabalharam em home office por 145 anos

Consultor Jurídico 2022-03-14

Com a pandemia, membros do Poder Judiciário passaram a desincumbir-se de grande parte de seu ofício em suas casas, especialmente na confecção de despachos e decisões judiciais. O que poderia parecer uma situação nova e atípica é, na verdade, um retorno às condições de trabalho da magistratura características do século 19 e de boa parte do século 20, sob as quais os edifícios de tribunais eram essencialmente destinados a audiências e sessões colegiadas, não abrigando gabinetes individualizados para os juízes.

A trajetória do funcionamento da Suprema Corte dos Estados Unidos é bastante ilustrativa desta sociologia laboral dos magistrados.  A corte constitucional americana funcionou em duas cidades antes de a capital ser transferida para Washington D.C. Inicialmente em Nova York, as sessões eram realizadas de forma improvisada no antigo prédio da Bolsa de Valores de Nova York. Depois, com a mudança provisória da capital para a Filadélfia, os juízes passaram a se reunir na antiga sede da assembleia legislativa da Pensilvânia (Pennsylvania State House), o que era de grande simbolismo, pois foi ali que a Declaração de Independência foi proclamada e onde teve assento a Convenção Constitucional de 1787.

Quando a capital foi transferida definitivamente para Washington D.C., em 1800, a Suprema Corte teve que se mudar para lá também, o que foi um grande desafio, porque os planejadores da nova capital americana conceberam uma sede para o Poder Executivo (a Casa Branca), outra para o Legislativo bicameral (o Capitólio), mas aparentemente “se esqueceram” de providenciar uma sede para o Judiciário.

Os juízes moravam em um dos poucos hotéis existentes, onde faziam seu trabalho, e conta-se que costumavam trocar ideias sobre os processos na taverna daquele estabelecimento, durante o jantar. No entanto, era necessário um espaço para as sessões de sustentação oral e para as deliberações colegiadas (conferences) e o Congresso cedia algumas salas improvisadas para esse fim.  Durante a Guerra de 1812, quando os ingleses botaram fogo no Capitólio, a Suprema Corte passou a reunir-se em casas privadas por algum tempo, até que o prédio do Legislativo fosse restaurado.

A situação em boa parte do século 19 era de grande inadequação, pois o Congresso vivia mudando o local de sessões públicas da Suprema Corte dentro do prédio, até que, com a construção do novo plenário do Senado em 1865, a sala de sessões passou a ser instalada definitivamente no velho plenário senatorial (Senate Old Chambers) dentro do próprio Capitólio, onde os trabalhos colegiados permaneceriam até a construção da sede própria, na terceira década do século 20. Esta câmara do Capitólio tecnicamente ainda é administrada pela Suprema Corte, e os juízes a usam uma única vez ao ano, quando se dirigem ao Congresso para o discurso presidencial sobre o Estado da União.

Note-se que em todo esse longo período, os juízes trabalhavam essencialmente em casa para redigir seus votos. Tinham inclusive que manter suas próprias bibliotecas e contratar secretários do próprio bolso. Quando chegou à Corte no início do século 20, Oliver Wendell Holmes Jr. inovou contratando “law clerks”, assessores especializados com formação jurídica, e somente em 1919 a Corte passou a pagar um auxílio de US$ 2.000 anuais aos juízes, para despesas com assessoria jurídica. Além disso, o funcionamento do órgão de cúpula do Judiciário dentro da sede do Legislativo não era apropriado do ponto de vista simbólico, em face do princípio da separação de Poderes.

Howard Taft viria a ser o grande líder que mudaria esse quadro e a própria concepção de trabalho em casa dos juízes. Advogado talentoso e posteriormente juiz, Taft nutria desde a juventude o desejo de ser membro da Suprema Corte, mas, por contingências e acasos do destino, acabou sendo eleito presidente da República em 1908. Como tal, ao promover a indicação de Edward White para o cargo de Chief Justice da Suprema Corte em 1910, Taft comentou: “Não há nada que eu mais desejei do que ser presidente da Suprema Corte e não posso ignorar a ironia de que eu, que tanto quis esse cargo, agora o estou designando para outra pessoa”.

Mas a ironia maior ainda estava por vir, pois quando White faleceu em 1921, o presidente Warren Harding nomeou o próprio Howard Taft para presidir a Suprema Corte, sendo o único caso em toda a história de um ex-presidente da República que também integrou e chefiou a Corte constitucional. Em contraste com sua apagada passagem pela Presidência da República – de onde saiu derrotado na tentativa de reeleição contra Woodrow Wilson em 1912 –, Taft se mostrou um grande presidente da Suprema Corte, cuja maior marca for ter obtido do Congresso, em 1929, a aprovação de recursos para a construção da sede própria da Corte, no lado oposto ao Capitólio.

O projeto foi entregue ao arquiteto Cass Gilbert, que projetou o prédio de mármore em estilo grego clássico, para afirmar a dignidade da Justiça. A construção começou em 1932 e foi concluída em 1935, mas nem Taft ou Gilbert a viram pronta, pois faleceram antes.

A construção foi considerada excessivamente ostentatória por alguns críticos na época, inclusive por muitos dos juízes que então atuavam na Corte. O célebre juiz Harlan F. Stone, ao visitar as dependências do prédio pela primeira vez, escreveu para seus filhos que “o palácio beira o estilo bombasticamente pretensioso, e me parece inapropriado para um grupo sereno de velhos homens, como são os integrantes da Suprema Corte”. A rejeição foi tamanha que, dos nove juízes, oito se recusaram a ocupar os gabinetes individuais, preferindo continuar a fazer seu trabalho em suas casas. Quem se deu bem foi o então recentemente nomeado juiz Hugo Black, que decidiu trabalhar no prédio e assim pôde escolher o melhor e mais amplo de todos os gabinetes, que ocuparia por 34 anos.

Com o passar do tempo, a nova realidade se impôs e hoje todos os juízes ocupam os confortáveis gabinetes do belo prédio, sempre preenchidos pelo critério de antiguidade. Dificilmente a pandemia vai fazer o tempo voltar atrás, embora, é claro, como sempre, algum trabalho judicante sempre será realizado em casa.

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As informações sobre Howard Taft e sua gestão à frente da Suprema Corte foram extraídas do clássico “A History of the Supreme Court”, de Bernard Schwartz.