Suprema Corte dos EUA reafirma que filiação à ordem é obrigatória para advogados

Consultor Jurídico 2022-04-11

Durante a década de 1980, a Ordem dos Advogados da Califórnia (State Bar of Califórnia) era politicamente muito atuante. A organização promovia lobbies no poder legislativo estadual não apenas no interesse da classe dos advogados, mas também em temas politicamente controversos, como a política de ações afirmativas, adotando, quase sempre um enfoque político liberal. Na mesma linha, oferecia petições de amicus curiae em casos emblemáticos envolvendo assuntos contenciosos, como controle de armas e imigração.

Na Califórnia, como em outros trinta um estados, a filiação e o pagamento de contribuições compulsórias à associação, pelos advogados, são estabelecidos em leis estaduais, como um requisito ao exercício da profissão.

Advogados de perfil conservador, inconformados com a assunção das posições políticas da ordem local, ajuizaram uma ação para que a entidade fosse proibida de atuar em temas politicamente controversos e não relacionados ao exercício da profissão ou, então, para que ficassem desobrigados de se filiarem ou de contribuírem para os cofres da instituição. A alegação era de o pagamento obrigatório para uma entidade com atuação política violava o direito de liberdade de expressão de seus associados, pois, conforme jurisprudência da Suprema Corte, a Primeira Emenda protege não apenas o direito de livre discurso, mas também o direito de não ser compelido a produzir ou convalidar um determinado discurso — doutrina do compelled speech, afirmada pela primeira vez em West Virginia Board of Education v. Barnette, 1943.

Os advogados perderam em primeiro grau, mas venceram a apelação perante a Corte de Apelações da Califórnia, que entendeu que a Ordem dos Advogados era equiparável a um sindicato e, portanto, poderia sofrer as mesmas restrições que esses quanto ao discurso compulsório de seus membros. No entanto, a decisão foi revertida pela Suprema Corte da Califórnia em 1989. Os advogados recorreram, então, à Suprema Corte dos EUA. Em Keller v. State Bar of California, apreciado em 1990, a corte constitucional americana julgou o caso e adotou uma posição intermediária, estabelecendo o seguinte: a) a lei estadual pode obrigar os advogados a se filiarem e a contribuírem para a Ordem dos Advogados, pois sua atividade se assemelha a de uma agência governamental de regulação da profissão; b) a Ordem dos Advogados pode atuar em causas políticas diversas, mas os recursos arrecadados dos seus contribuintes só podem ser usados na regulação da profissão ou na melhoria dos serviços de advocacia oferecida ao estado.

A decisão foi unânime e o Juiz Rehnquist, que redigiu a decisão, seguiu em parte a linha adotada pela Corte de Apelações, relativamente à comparação da Ordem dos Advogados com sindicatos de servidores públicos, já que estes, desde os precedentes Abood v. Detroit Board of Education (1977) e Chicago Teachers Union v. Hudson (1986), são obrigados a contribuir compulsoriamente para o sindicato da categoria nos termos da legislação sindical, mas devem ter assegurado um prazo razoável para questionar a destinação do dinheiro e consigná-lo até que se chegue a uma conclusão, que pode ser a de restituir parte da contribuição que tenha sido despendida em discurso político.

Essa linha de fundamentação acabou de certa forma vinculando a decisão inédita com relação à Ordem dos Advogados aos precedentes da corte a respeito de financiamento sindical — embora as Bar Associations americanas não sejam propriamente sindicatos, como no Brasil, mas sim órgãos de regulação da atividade profissional, assemelhando-se mais às antigas guildas profissionais que vicejaram na Europa pré-industrial, sendo das poucas sobreviventes pós-revoluções liberais do século XVIII, que preconizavam a liberdade absoluta de trabalho e ocupação.

Em 2018, no entanto, ao julgar o caso Janus v. AFCME, por maioria estreita de quatro votos a cinco, numa decisão bastante controvertida e criticada, a Suprema Corte promoveu o overruling do caso Abood, em vigor desde 1977 e que havia sido decidido, então, de forma unânime. Como votos em claras linhas ideológicas de acordo com a composição da corte, que recém recebera o primeiro indicado de Trump, Neil Gorsuch, a corte passou a entender que contribuições sindicais compulsórias não mais poderiam ser cobradas em sindicatos de servidores públicos, pois os que discordassem do posicionamento do sindicato em matéria de interesse público (salários de funcionários públicos, orçamento, etc), estariam sendo obrigados a coonestar um determinado discurso político. É importante ressaltar que, na área do sindicalismo em empresas privadas, as contribuições sindicais compulsórias continuam plenamente válidas — conforme precedentes Railway Emploee´s Dept. v. Hanson (1956) e International Association of Machinists v. Street (1966).

O cavalo de pau na jurisprudência da Corte Roberts sobre sindicatos de servidores públicos e financiamento sindical abriu uma nova janela de oportunidades aos muitos advogados que nunca se conformaram com a obrigatoriedade de filiação e, especialmente, de contribuição à ordem profissional. Como a corte havia equiparado a ordem de advogados a sindicatos de servidores públicos, esses advogados rapidamente retomaram a tese, com o fim de questionar a cobrança no judiciário, na esperança de que a Suprema Corte revisse o caso Keller diante do caso Janus.

Várias ações foram ajuizadas na justiça federal, e as Cortes de Apelação do 5º. e 10º. Circuitos rejeitaram a tese, dizendo que, embora a lógica da fundamentação do caso Keller recorra aos sindicatos de servidores públicas de maneira analógica, isso por si só não enseja a conclusão de que o overruling de Janus, além de Abood, abrange também o caso Keller, já que neste há questões específicas de regulação da profissão.

Os recursos das duas decisões chegaram ao exame da Suprema Corte na última semana e sua admissibilidade foi negada por sete votos a dois. Apenas os juízes Clarence Thomas e Neil Gorsuch indicaram que pretendiam rever o caso Keller, mas seus votos foram insuficiente diante da rule of four — isto é, a admissibilidade de um recurso, dentro da discricionariedade que lhe é comum, depende da aceitação do caso por pelo menos quatro juízes. Com isso, permanecem válidas as decisões da justiça federal e segue em pé o precedente Keller. De certa forma, a corte Roberts mostra uma faceta de incoerência e viés antissindical, ao restringir as contribuições compulsórias apenas para os sindicatos de servidores públicos.

As ordens de advogados dos Estados Unidos ainda continuam a defender posicionamentos políticos em temas controversas, mas de maneira e frequência bem mais acentuada, devido às restrições impostas em Keller. Na sabatina da Juíza Ketanji B. Jackson, o senador republicano John Cornyn (Texas) chegou a criticar publicamente a American Bar Association (Ordem no plano federal), dizendo que o seu endosso à indicação do presidente Joe Biden não deveria ganhar muito crédito dadas às posições políticas de seus dirigentes, manifestadas em temas politicamente sensíveis.