Juízes ou críticos de arte: Andy Warhol na Suprema Corte dos EUA
Consultor Jurídico 2022-10-17
Na semana que passou, a Suprema Corte dos EUA ouviu sustentação oral de um caso cuja decisão poderá afetar os negócios no mundo da arte. A fundação que administra o legado do célebre artista plástico Andy Warhol está sendo processada pela fotógrafa Lynn Goldsmith, autora de um famoso retrato do cantor e compositor Prince, o qual foi usado como “base” para intervenções criativas (ou nem tanto) de Warhol.
A história começa em 1981, quando a revista semanal Newsweek encomendou a Lynn um retrato de Prince, que então despontava como um possível novo ícone da música, porém ainda pouco conhecido pelo grande público. A fotógrafa era especialista em retratos de astros do showbiz, e já tinha produzido imagens icônicas de Mick Jagger, Bob Dylan e Bob Marley, entre outros.
Algum tempo depois, em 1984, quando Prince atingira o estrelato com o sucesso “Purple Rain”, a Vanity Fair pagou US$ 400 (equivalente a US$ 1.306 hoje) pelo uso dos direitos da fotografia, e o contrato previa que a imagem somente poderia ser usada nas páginas da revista. A Vanity Fair então contratou Warhol para ilustrar a foto, sobre a qual foram aplicadas técnicas de colorização e leve distorção típicas do artista. A imagem produzida por Warhol foi publicada em um dos números da publicação, com o devido crédito de autoria da foto atribuída a Goldsmith.
Andy Warhol gostou da brincadeira e produziu mais 15 imagens diferentes de Prince, todas a partir da mesma fotografia, em técnica semelhante à que já havia utilizado na famosa série com um icônico retrato de Marilyn Monroe. O conjunto ficou conhecido como “Prince Series” e aparentemente Goldsmith não tinha conhecimento sobre sua existência. Quando Prince faleceu, em 2016, a mesma Vanity Fair publicou um tributo ao finado cantor, e usou uma daquelas 15 imagens produzidas por Warhol na capa da edição, desta vez sem atribuir o copyright à fotógrafa nem remunerar-lhe. A imagem foi cedida pela Fundação Andy Warhol.
Lynn Goldsmith enviou uma notificação extrajudicial à Fundação Andy Warhol, alegando uso indevido de seus direitos autorais, mas a fundação negou-se a negociar qualquer compensação. A fotógrafa ajuizou, então, ação de indenização perante a Justiça Federal de primeira instância em Nova York. A decisão deste juízo lhe foi contrária, pois entendeu-se que o trabalho de Warhol era “transformativo” e que sua série de retratos era, portanto, uma obra distinta da original.
A decisão fez inclusive comentários sobre a natureza da obra, dizendo que ela mostrava Prince com uma persona distinta pelos efeitos aplicados por Warhol, que o elevava de uma “pessoa vulnerável e desconfortável para uma figura icônica, maior que a vida”. O juiz que proferiu a decisão seguiu uma doutrina sobre direitos autorais dos EUA conhecida como “uso justo”, que dispensa a autorização de copyright em certos casos, como, por exemplo, naqueles em que a imagem é utilizada para se analisar e comentar a própria obra ou em trabalhos que utilizam trechos ou partes de obras anteriores para novas formas de expressão.
A fotógrafa recorreu à Corte Federal de Apelações do Segundo Circuito e a decisão de primeiro grau foi revertida. O tribunal entendeu que a primeira instância havia se comportado como “um crítico de arte”, ao procurar encontrar um sentido artístico para a obra de Warhol, papel que não caberia ao Judiciário. Segundo o tribunal, em casos que tais, os juízes deveriam se limitar a analisar o “grau de similaridade” entre as obras. E concluiu entendendo que os trabalhos de Goldsmith e Warhol eram substancialmente similares. A decisão aparentemente é contraditória, pois determinar o grau de similaridade entre obras de arte não deixa de ser uma tarefa de críticos de arte.
A Fundação Warhol conseguiu, a seguir, a admissibilidade de recurso perante a Suprema Corte, ao argumento de que a decisão do Segundo Circuito poderia inibir a liberdade de expressão artística, garantida pela Primeira Emenda, que estaria violada se artistas não puderem criar novas obras de arte a partir de outras. De outro lado, os advogados de Goldsmith alegam que a exigência de respeito aos direitos autorais não obsta a liberdade de expressão artística, mas, ao contrário, a protege de ações que destruam o valor econômico das produções. Também alegam que mesmo em setores culturais em que tradicionalmente ocorrem transformações da obra primária, como o de roteiros adaptados para o cinema, o direito autoral da obra nunca é questionado.
Na sessão de arguição, os juízes fizeram muitos questionamentos às partes, mas ainda não é possível saber para que lado o julgamento caminhará. Como nota curiosa, durante a arguição, o conservador juiz Clarence Thomas declarou que era um fã de Prince nos anos 1980. A juíza Elena Kagan perguntou se ele havia sido um admirador apenas no passado. Depois de uma pausa, Clarence disse que por vezes o ouve, “às terças-feiras”, com isso querendo dizer que o seu cantor não deve estar no topo das suas listas.
Uma questão que a Suprema Corte certamente enfrentará é a de estabelecer se o Poder Judiciário está preparado para fixar critérios objetivos sobre o que é uma obra original e o que venha a ser simples símile. Atribuir a si o papel de crítico de arte faria o tribunal retornar aos dilemas das décadas de 1960 e 1970, quando, ao examinar casos de liberdade de expressão, a corte foi inundada por processos que questionavam a qualidade artística de obras que continham obscenidade, proibidas em estados mais conservadores. Ficou famosa, na época, a frase do juiz Potter Stuart, indicando a dificuldade de fixação de critérios objetivos em julgamentos desse tipo: “Eu não posso definir o que é obscenidade, mas eu a reconheço quando a vejo” (Jacobellis v. Ohio, 1964). Talvez, agora, o mesmo dilema desafie resposta semelhante: “não posso definir o que é cópia de uma obra de arte, mas eu a reconheço quando a vejo”.