Gestão de riscos na nova Lei de Licitações

Consultor Jurídico 2023-01-13

Não é possível planejar sem fazer gestão de risco. Essa frase é tão verdadeira para a vida quanto para as licitações. De fato, quando Roberto Carlos e Erasmo Carlos escreveram “é preciso ter cuidado, para mais tarde não sofrer”, poderiam ter completado com: é preciso gerir riscos. A opção dos compositores por “é preciso saber viver”, sem dúvidas, fecha maravilhosamente a primeira estrofe da célebre canção da década de 1970. 

Brincadeiras à parte[1], nas licitações, observa-se que muitos dos órgãos e entidades apenas viveram (ou sobreviveram) às rotinas das compras públicas. Preocupados apenas com seguir à risca os procedimentos exaustivamente prescritos na Lei 8.666/93 – e não com os resultados e a finalidade pública – raramente se dedicaram a gerir os riscos envolvidos nas contratações. 

Se Roberto e Erasmo Carlos já alertaram que é preciso saber viver, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos passa a seguinte mensagem: é preciso saber gerir riscos. Em outros termos, não basta licitar, é preciso saber licitar. Ou, no caso dos particulares, é preciso saber participar das licitações.  

Gestão de riscos como ferramenta da governança 

Para que seja possível realizar licitações corretamente, a nova Lei de Licitações reiteradamente alerta para a necessidade de implementação de ações baseadas em governança e em gestão de riscos. Neste estágio, é importante mencionar que esta é uma ferramenta daquela.  

Em verdade, a governança fornece parâmetros para que a organização alcance seus objetivos, enquanto que a gestão de riscos fornece aos gestores as informações necessárias para as tomadas de decisões.  

Conclui-se que a gestão de riscos está intrinsecamente ligada com a busca pela melhora nos resultados da organização, estando alinhada ao direito fundamental a uma boa administração pública. 

Não é por outra razão que a Lei 14.133/21, em seu artigo 11, parágrafo único, determina a implementação de processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, como condição para a promoção da eficiência, efetividade e eficácia nas contratações. 

Em outras palavras, para uma correta gestão de risco, se faz necessário o planejamento da organização como um todo, para só então planejar o setor de compras e, finalmente planejar a contratação em espécie. Estes três passos representam os três tópicos a seguir.   

Gestão de risco no planejamento da própria instituição 

O primeiro passo deve ser a realização de um diagnóstico da atual situação da organização, para fins de identificação dos riscos. Aqui, o inventário não deve ser apenas do quantitativo ou da capacitação de pessoal. Também é necessário conhecer a estrutura física disponível, as soluções de tecnologia da informação, o estoque de materiais, o histórico de compras, dentre outros. 

Veja-se que qualquer planejamento organizacional que não leve em consideração as informações trazidas por este diagnóstico está fadado ao fracasso. É que o pensar não pode estar dissociado da capacidade de executar.  

A própria lei determina que cada processo licitatório deve estar alinhado com o plano de contratações anual, de responsabilidade da alta administração, conforme depreende-se da leitura de seu artigo 18. 

Gestão de risco no planejamento do setor de licitação

A nova Lei de Licitações trouxe em seu bojo alguns dispositivos que são diretamente aplicáveis na estruturação do setor de compras públicas. Pode-se dizer que a própria lei inicia um mapeamento de riscos e elege soluções para mitigá-los. 

Com efeito, em relação a maior parte das funções essenciais, a Lei 14.133/21 optou por apenas dar preferência a servidores efetivos e empregados públicos dos quadros permanentes da administração (artigo 7º). 

No entanto, delegou aos regulamentos de cada ente a confecção de regras quanto a atuação destes agentes (artigo 8º, §3º). Isto quer dizer que cada ente, quando da elaboração da norma reguladora, deve realizar sua própria gestão de risco e, observada a sua realidade local, decidir acerca da manutenção ou não de tal requisito. 

Prosseguindo, a nova lei identificou um segundo risco: o acúmulo de funções suscetíveis a riscos, ainda que por agentes que reúnam todos os requisitos para desempenhar as funções essenciais. Neste caso, a medida mitigadora inserta na lei seria o respeito ao princípio da segregação de funções (artigo 7º, §1º). 

Tais funções, em regra, envolvem atribuições decisórias[2] e sua acumulação, por um mesmo agente, tem por consequência a) facilitar que um agente público mal intencionado possa praticar e mascarar atos ilícitos[3]; b) concentrar a pressão de agentes externos sobre agentes públicos que concentrem tais funções; c) dificultar o trabalho das linhas de defesas de identificação da origem de eventuais irregularidades e propositura de medidas de mitigação. 

Também deve ser destacada a importância do estabelecimento de manuais e cadernos de procedimentos internos, fluxograma claro e sem arestas. Sem tais ações, há forte risco de paralisação processual, além de retrabalho, conflitos de atribuições e engavetamentos imotivados de procedimentos. 

Se o diagnóstico do setor de licitação já identificar ausência de estabelecimento de procedimentos claros ou notar gargalos no andamento dos procedimentos, deve listar o problema como um risco crítico que merece atenção imediata. 

Gestão dos riscos dos procedimentos licitatórios em espécie 

A implementação de todas as medidas das linhas pretéritas ainda não é suficiente. De fato, a nova Lei de Licitações determina ainda a necessidade de realização de gestão de riscos de todos os processos licitatórios, em espécie. Ressalte-se, de acordo com o artigo 169 da lei 14.133/21, tal providência deve ser executada como uma prática contínua e permanente. 

O trabalho dos agentes públicos, portanto, é estabelecer que variáveis são mais relevantes para classificar os procedimentos licitatórios como de baixo risco ou de risco altíssimo. A lei, quanto ao ponto, não avança mais que isso. Os regulamentos, portanto, deverão deixar mais claro como tal classificação deverá ser feita na prática. 

A nova lei indica, contudo, uma ferramenta essencial para a gestão de riscos nos processos em espécie: a matriz de riscos. Trata-se de cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes, que estabelece o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato (artigo 6º, XXVII). 

Tal matriz é obrigatória para contratações de grande vulto e para as que se utilizarem dos regimes de contratação integrada e semi-integrada. A confecção dessas matrizes exige capacitação e conhecimento do objeto, atraindo a necessidade de equipe multidisciplinar.  

Considerações finais 

A nova roupagem da gestão de riscos trazida pela Lei 14.133/21 exigirá um aperfeiçoamento contínuo. Não há como se imaginar que a simples vigência do novo texto – e de seus regulamentos – será capaz de, por si só, implicar na tomada de medidas de gestão de risco sempre adequadas e suficientes. O fato é que as dificuldades iniciais devem ser enfrentadas, pois a gestão dos riscos é prática contínua e obrigatória, para a nova Lei de Licitações.  

Sem dúvidas, a medida em que o grau de maturidade da organização aumentar, mais precisa a gestão dos riscos tende a ficar. 

Tratando-se de medidas de planejamento, é muito importante começar agora, ou seja, antes mesmo da revogação da Lei 8.666/93. Diagnosticar a organização, fornecer a devida capacitação e estrutura para os agentes públicos e iniciar a tratamento dos riscos identificados é missão que se faz urgente.


[1] Este artigo é uma singela homenagem ao Erasmo Carlos, lenda do rock nacional e da jovem guarda, que nos deixou em 22 de novembro de 2022.

[2] Lista-se alguns julgados em que o TCU entendeu que o acúmulo de função fere o princípio da segregação de funções: TCU. Plenário, Acórdão 2.296/2014; TCU. Plenário, Acórdão 1.375/2015; TCU. Plenário, Acórdão 0.908/2016; TCU, Primeira Câmara, Acórdão 1.278/2020.

[3] TCU. Plenário, Acórdão 1.668/2021.