CPIs e Comissões Mistas de MPs: 3 perguntas e respostas e 1 comentário

Consultor Jurídico 2023-03-29

Nos últimos dias, recebi diversas consultas formais e informais envolvendo matérias do mundo legislativo. Como todas as perguntas recebidas são interessantes e atuais, de forma a compartilhar com os demais leitores desta Defensor Legis, a coluna de hoje assumirá um formato diferente, resumindo as questões e as respostas dadas.  

1) Deveria o presidente do Senado ter procedido à leitura para a instalação da CPI dos Atos do 8 de Janeiro? Por que não se aplicou o “precedente” da CPI da Pandemia?

Imediatamente após os atos de vandalismo do último dia 8 de janeiro, a senadora Soraya Thronicke (União-MS) apresentou requerimento subscrito por 38 senadores para a instalação da CPI destinada a “apurar a responsabilidade pelos atos antidemocráticos praticados no dia 08 de janeiro de 2023, por grupo de pessoas que invadiu e depredou os prédios do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto”.

A rigor, pelo entendimento do STF firmado no MS 37.760-MC, o presidente do Senado teria o dever de proceder à imediata leitura e à instalação da CPI. Vale lembrar que, antes mesmo de a referida decisão ter sido prolatada, seu absurdo já tinha sido objeto desta coluna. Mas já não se vai insistir na crítica hoje. 

A questão é que, como tais providências esperadas não aconteceram, a senadora impetrou o MS 39.014 para ver aplicado o “precedente” da CPI da Pandemia. Daí a dúvida: requerimentos de CPIs antes do início da legislatura devem ser lidos e os colegiados instalados na legislatura seguinte?  

A resposta é não. O 76, §4º, do Regimento Interno do Senado Federal (RISF), estabelece que o prazo da comissão parlamentar de inquérito não poderá ultrapassar o período da legislatura em que for criada. 

O princípio que subjaz à regra é o da unidade da legislatura previsto no 44, parágrafo único, CF (“Cada legislatura terá a duração de quatro anos”), cuja lógica implica que, a cada quatro anos, os assuntos pendentes devem ser arquivados e tidos por encerrados, de modo a dar espaço à nova composição da Casa Legislativa. Trata-se da lógica temporária dos parlamentos. 

Dito isso, como muitos parlamentares que subscreveram o requerimento podem não ter sido reeleitos, resulta mais que razoável que os parlamentares que tomaram posse na nova legislatura não estejam vinculados à conformação das forças políticas da legislatura anterior. Nesse sentido, inclusive, tem-se a resposta dada à Questão de Ordem 4/2003 da Câmara dos Deputados. 

Então, assunto encerrado: correto o procedimento do presidente do Senado em solicitar que as assinaturas sejam novamente colhidas. Definitivamente, o “precedente” da CPI da Pandemia não se aplica ao caso. 

2) O objeto da CPI das ONGs, mesmo amplo, atende ao requisito “fato determinado”?

No último dia 6 de fevereiro, o senador Plínio Valério (PSDB-AM) apresentou requerimento subscrito por mais 36 senadores para a criação da CPI das ONGs destinada a “a) investigar a liberação, pelo Governo Federal, de recursos públicos para organizações não-governamentais – ONGs – e para organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIPs, bem como a utilização, por essas entidades, desses recursos e de outros por elas recebidos do exterior, a partir do ano de 2002 até a data de 1º de janeiro de 2023; b) investigar a concentração desses recursos em atividades-meio, de forma a descumprir os objetivos para os quais esses recursos foram destinados originalmente; c) investigar o desvirtuamento dos objetivos da ação dessas entidades, operando inclusive contra interesses nacionais; d) investigar casos de abuso de poder, com intromissão dessas entidades em funções institucionais do poder público; e e) investigar a aquisição, a qualquer título, de terras por essas entidades”. 

Como sabido, os requerimentos de criação de CPIs precisam conter: a) a assinatura de um terço dos membros da Casa Legislativa; b) a indicação do fato determinado a ser apurado; c) o número de membros da comissão; d) o prazo certo de duração dos trabalhos; e e) o limite das despesas a serem realizadas (58, §3º, da CF, c/c 1º da Lei 1.579/1952, c/c 145, §1º, do RISF). 

No último dia 15 de março, a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) formulou questão de ordem, reputando que a amplitude do requerimento da CPI das ONGs – que pretende investigar fatos ocorridos nos últimos 21 anos – não delimita claramente o objeto da investigação. Daí a pergunta: o que se entende por fato determinado para os fins do 58, §3º, da CF? 

A definição consta do 35, §1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD): “Considera-se fato determinado o acontecimento de relevante interesse para a vida pública e a ordem constitucional, legal, econômica e social do país, que estiver devidamente caracterizado no requerimento de constituição da Comissão”. Tal dispositivo é aplicável por analogia ante a omissão do RISF. A partir dele, tem-se entendido que as CPIs não poderiam ser instauradas para apurar fato exclusivamente privado ou de caráter pessoal. 

Agora, quanto à delimitação dos fatos da CPI das ONGs, a despeito de ampla, nada obsta a que o próprio colegiado, quando instalado, determine melhor seu objeto. Além disso, deve-se considerar não só o lapso temporal, mas também o espaço territorial – no caso, a região da Amazônia –, de modo que amplitude não se confunde com indeterminação. 

3) Requerimento de CPI formulado por parlamentar idoso deve ter preferência com base no Estatuto do Idoso?

Aconteceu na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), onde existe a mesma regra do RICD, 35, §4º, que limita a cinco o número de CPIs funcionando ao mesmo tempo. Como sabido, esse tipo de regra acarreta um corre-corre no início da legislatura para o protocolo dos requerimentos de criação, pois a fila segue a ordem cronológica de apresentação. Na época “analógica”, os assessores “acampavam” na fila. Hoje em dia, o protocolo é eletrônico, mas excepcionalmente isso não foi observado esse ano na Alesp.  

Em todo caso, a estratégia de qualquer governo é tentar garantir o domínio da pauta com CPIs inexpressivas, que não vão dar dor de cabeça. 

O fato é que, em meio a essa confusão típica de início de legislatura na Alesp, o deputado Eduardo Suplicy (PT-SP), de 81 anos, pediu preferência na fila das CPIs por ser idoso. A manobra não deu certo no episódio. Mas ficou a dúvida: deveria ser aplicável o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003, 3º, §1º) nesse caso? Dito com outras palavras, parlamentares idosos deveriam ter algum tipo de preferência nas rotinas legislativas? 

Definitivamente, a resposta é não e a razão muito simples: one man one vote. Dentro dos parlamentos, cada um de seus membros, idosos ou não, representa seus eleitores. Conferir qualquer tipo de tratamento diferenciado violaria a isonomia entre os parlamentares e o próprio princípio democrático, desprestigiando os eleitores de um representante que não seja idoso. Isso poderia gerar ainda mais distorções e até mesmo paradoxos, por exemplo, se todos os votantes de um parlamentar são idosos, mas ele mesmo, não. 

Em resumo, o princípio democrático veda a distinção entre os próprios parlamentares, o que ocorre apenas de modo excepcional e temporário nas eleições para os cargos da Mesa e designação para lideranças e comissões, cujos postos podem garantir poderes especiais, mas jamais pela idade ou qualquer outra característica de ordem pessoal. 

Comentário sobre o retorno ou não das Comissões Mistas de Medidas Provisórias

Como sabido, a previsão de atuação das comissões mistas já figurava na Resolução 1/1989, do Congresso Nacional, tendo essa previsão regimental sido suficiente para viabilizar a instalação desses colegiados em apenas três vezes: MP 2218/2001, MP 2151-3/2001 e MP 2196-3/2001. 

Nem mesmo a constitucionalização no 62, §9º, da CF, incluído pela EC 32/2001, fez as comissões mistas “pegarem”. No período que medeia a promulgação da referida EC até o julgamento da ADI 4.029 praticamente não foram instaladas. Novamente, foram três as oportunidades: MP 6/2001, MP 182/2004 e MP 232/2004. 

Ao julgar a ADI 4.029, o STF mostrou um profundo desconhecimento das práticas parlamentares, ignorando que tais comissões mistas tinham caído em desuso. Na prática, ao declarar inconstitucional o costume adotado pelo Congresso, determinou a criação “artificial” desses colegiados. 

Um dos trabalhos que melhor analisa as consequências do julgamento da ADI 4.029 é o de Rodrigo Ribeiro Bedritichuk (“Medida Provisória, uma moeda inflacionada: A inclusão das comissões no rito de tramitação das medidas provisórias e o aumento dos custos de aprovação”), cuja leitura é mais do que recomendada por esta colunista. 

Não foram poucos os transtornos causados pela obrigatoriedade de criação de uma comissão mista para cada MP editada. Simplesmente não há parlamentares (especialmente senadores) em número suficiente para marcar presença “de verdade” nas reuniões dessas comissões mistas, cujos horários costumam ser simultâneos, seja por conta do excesso de MPs editadas, seja pela falta de tempo hábil ou pela lógica da agenda legislativa (concentrada de terça a quinta-feira de cada semana). 

Em determinado momento logo após a ADI 4.029, chegou-se ao absurdo de ver assessores correndo para lá e para cá nos corredores das comissões para colher as assinaturas de parlamentares que estavam em outras salas (comissões) e assim poder “formalizar” as reuniões desses colegiados, que sempre enfrentaram problemas de quórum e por vezes não foram capazes de trabalhar adequadamente.  

Nem todas as MPs despertam a mesma atenção dos parlamentares, e nem sempre os esforços (leiam-se os acordos) das comissões mistas valem para o plenário, onde o jogo quase sempre “zera”. 

Toda essa volta para dizer o seguinte: a criação das comissões mistas jamais foi uma “preferência” dos próprios parlamentares, mas, sim, uma imposição do STF. Com a pandemia, a supressão das comissões mistas foi o mecanismo encontrado para garantir a desejada celeridade na tramitação dos temas importantes para debelar a crise. Esse e outros aspectos do processo legislativo da pandemia foram delineados aqui. 

Claro que essa excepcionalidade não ia durar para sempre e em algum momento a questão voltaria à tona. Nesse contexto, é natural que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), reivindique que seja o próprio Congresso Nacional o protagonista para avançar no desenho do processo legislativo. Seria uma excelente oportunidade para o Senado conseguir o desejável tempo hábil para análise das MPs que tantas vezes lhe é negado na prática com envios e deliberações a menos de 24 horas do fim do prazo constitucional.  

Quem simplesmente insiste na tecla de que as comissões estão previstas na CF “e ponto” não está enxergando a verdadeira dimensão da discussão.  

Houve um desuso imposto pelos fatores reais de poder e que foi, como já dito, revertido “artificialmente” pelo STF. Tamanho era o desconhecimento dos ministros do STF sobre a real dimensão desse costume parlamentar (de não constituir as comissões mistas), que, logo após o julgamento, ao chegar o dado de que mais de 500 MPs seriam consideradas inconstitucionais por arrastamento em razão do mesmo “vício”, foi necessário modular os efeitos para que o entendimento da ADI 4.029 só valesse dali em diante. 

Daí que vem em boa hora a notícia de que o senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) desistiu de suas tentativas de levar essa discussão para o STF. Não é lá que esse tipo de assunto deve ser resolvido. Tudo o que o Legislativo menos precisa é que o STF, novamente sem conhecer a fundo as questões legislativas, prolate mais uma decisão interferindo na forma como os parlamentares devem conduzir os seus próprios trabalhos.