O STF e a descriminalização das drogas
Consultor Jurídico 2023-08-02
O projeto colonial teve por ponto de partida o princípio da exterioridade. Os muitos “outros” que ele produziu, a partir da ideia de desconformidade com o padrão ocidental eurocêntrico, estavam impossibilitados de serem sujeitos da vida em comunidade. Foram tornados à parte, marginalizados, separados, apartados, segregados.
A Constituição de 1988 é um investimento numa sociedade descolonizada, que reconhece os escombros da colonização, mas busca inverter o sentido daquilo que foi, de modo a reorientar o futuro para uma nova lógica da vida. Isso só é possível, certamente, com instituições e cultura política renovadas, dispostas a enfrentar tecnologias de poder vocacionadas a tornar determinadas existências incertas e precárias.
Essa reflexão se dá a propósito da retomada do julgamento do RE 635.659, com repercussão geral reconhecida, que trata do porte de entorpecentes para consumo pessoal. Os votos até então proferidos indicam, em sua maioria, a opção pela descriminalização do uso da maconha em quantidade objetivamente determinada. A fixação desse critério objetivo é sugerida pela “legislação modelo” do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). A despeito do avanço que esse entendimento representa, é ainda insuficiente para neutralizar os perversos e equivocados efeitos da chamada “guerra às drogas” no país: superabundância da oferta, sobrecarga do sistema de justiça criminal, encarceramento em massa, violência, corrupção e impacto desproporcional sobre a população preta, pobre e periférica.
Uma das premissas fundamentais a orientar o debate atual é a garantia constitucional do direito à intimidade e à vida privada (art. 5º, X, CF) e, no campo penal, o correlato princípio da ofensividade: a conduta puramente individual, mesmo que imoral, escandalosa ou diferente, não pode legitimar a intervenção penal por lhe faltar lesividade. Nesse sentido, não há razão legítima para a distinção entre a cannabis e outras substâncias entorpecentes, como cocaína, crack, LSD etc.
O uso delas para consumo pessoal, enquanto manifestação exclusiva da intimidade do agente, deve estar fora da incidência penal. Dois argumentos são corriqueiramente apresentados em favor da criminalização. Um é relativo ao impacto sobre a saúde pública, que parece ignorar dois fatores incontestáveis: a criminalização afasta o usuário dos serviços de saúde e estes já arcam com os custos de outras drogas igualmente severas, como o tabaco e o álcool, devendo, por equidade, suportar todas as demais.
Um outro, que diz que a repressão ao consumo é eficiente para o combate ao tráfico, briga com os fatos. Em relatório de 2011, a Global Comission on Drug Policy, que reúne líderes mundiais como os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Ernesto Zelillo (México), César Gaviria (Colômbia) e Ruth Dreifuss (Suíça) e o ex-secretário geral das Nações Unidas Kofi Annan, recomendou aos governos que tentassem “modelos de regulamentação legal de drogas com o objetivo de enfraquecer o poder do crime organizado e preservar a saúde e a segurança de seus cidadãos”.
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento publicou, em março de 2015, o documento intitulado “Perspectives on the development dimensions of drug control policy”, que apontou que a política de “guerra às drogas”, além de nenhum efeito na erradicação da produção ou no uso problemático dessas substâncias, acarretou “danosas consequências colaterais, como a criação de um mercado criminal, o aumento da corrupção, da violência e da instabilidade, ameaça à saúde e à segurança públicas; violações a direitos humanos em larga escala, aí incluídas punições abusivas e desumanas, discriminações e marginalização de pessoas”.
E esse é o ponto principal da “guerra às drogas” no país: a expressão mais evidente de seu racismo estrutural. São inúmeras as condenações de pessoas pelo crime do art. 33 da Lei 11.343/2006 por portarem pequena quantidade de drogas “em locais conhecidos como ponto de tráfico de drogas”, locais esses sempre em territórios periféricos.
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro publicou em 2018 análise sobre 3.167 processos judiciais distribuídos entre 1º de junho de 2014 e 30 de julho de 2015 no Tribunal de Justiça daquele estado, todos relativos aos artigos 33, 34, 35 e 37 da Lei 11.343/2006. As prisões de pessoas que portavam até 100g de maconha chegam a 49,72% do total. A frequência de coincidência entre favelas e “locais considerados como ponto de venda de drogas” é de 65,84%. A mesma pesquisa também revela que o perfil da maioria das pessoas condenadas é de réus primários, sem antecedentes criminais, presos em flagrante sozinhos, desarmados e com pouca quantidade de droga, durante operações policiais realizadas em locais que supostamente seriam dominados por organizações criminosas.
Levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz, de 2014, com dados colhidos no Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária e no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), demonstra que as prisões por porte de maconha são, em mais da metade dos casos, de pessoas pretas que estavam com quantidade inferior a 100g e, em 14%, inferior a 10g. O Supremo Tribunal Federal está às voltas com o tema em ao menos dois casos: a ação da polícia nas favelas do Rio de Janeiro (ADPF 635) e o perfilamento racial (HC 208.240).
O racismo estrutural se desdobra na maneira ostensivamente negligente de condução de inquéritos policiais e posterior condenação criminal. Publicação recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2023) intitulada “Critérios objetivos no processamento criminal por tráfico de drogas: natureza e quantidade de drogas apreendidas nos processos dos tribunais de justiça comum”, revela que, dentre os casos analisados, não há precisão na indicação da natureza das substâncias e nem padronização na apresentação da quantidade apreendida. Do total de sentenças analisadas, 36% não mencionava a massa em gramas dos casos de cannabis e 45%, dos casos de cocaína.
A pesquisa “Tráfico e sentenças judiciais – uma análise das justificativas na aplicação de Lei de Drogas no Rio de Janeiro”, realizada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça, evidencia que 53,73% de condenações por tráfico de drogas naquele estado apresentam como única fundamentação o testemunho dos policiais que participaram do flagrante.
Diante desse cenário, de ilegalidade sistêmica, de retomada da experiência colonial e de seu sustentáculo racial no discurso e até na consciência de seus protagonistas, a estipulação de um critério meramente objetivo para a diferenciação entre traficante e usuário será facilmente superado. O México, por exemplo, adotou o patamar de 5g de maconha em sua legislação e esse montante passou a ser utilizado pelos juízes como prova contrária ao acusado flagrado com quantidade maior da droga.
Portanto, alguns parâmetros adicionais precisam estar presentes. O principal deles é o critério da presunção absoluta para consumo próprio, diante do princípio constitucional da presunção de não culpabilidade (art. 5º, LVII), devendo a acusação vencer o ônus probatório da finalidade de comércio. O outro é a invalidade da condenação resultante exclusivamente de depoimento policial, pois o contrário equivaleria dotá-lo de uma presunção de veracidade incompatível com a presunção de inocência.
E, mais do que tudo, vigilância a respeito do racismo estrutural. Achille Mbembe, em Sair da Grande Noite: ensaio sobre a África descolonizada, lembra que a colonização não foi “apenas ambiguidades”, mas “um complexo, uma pirâmide de certezas, umas mais ilusórias do que as outras: a potência do falso”.