O regime jurídico dos poderes investigatórios da PGFN

JOTA.Info 2024-05-24

A importância de um combate efetivo aos ilícitos fiscais vem sendo amplamente reconhecida no cenário mundial nos tempos atuais, uma vez que esses atos ilícitos geram diversos efeitos adversos para as economias dos Estados nacionais, causando distorções nos respectivos mercados internos, contribuindo para desfalcar as finanças públicas e prejudicando, no fim, a grande maioria dos contribuintes, que cumprem regularmente suas obrigações tributárias principais e acessórias.

Por conta disso, também é disseminada a noção de que devem ser concedidos, às autoridades públicas de cada país, os poderes necessários para a prevenção e repressão desses ilícitos. É o que se constata, por exemplo, dos chamados dez princípios globais na luta contra os delitos fiscais, que consistem em recomendações elaboradas pela OCDE após análises sistêmicas das experiências de diferentes jurisdições fiscais. Dentre esses princípios, constam diversas recomendações relacionadas tanto à repressão penal quanto à repressão civil dos ilícitos fiscais.

No Brasil, na esfera federal, o combate a ilícitos fiscais é de atribuição de diferentes órgãos, conforme a instância – cível ou penal – e as medidas necessárias para a repressão da infração. No âmbito cível, destaca-se a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), que, conforme o art. 131, § 3º, da Constituição Federal, possui a atribuição para a cobrança da dívida ativa da União. Embora não enumere, de modo mais específico, os poderes da PGFN, delegando expressamente essa tarefa para o legislador infraconstitucional, o mencionado dispositivo pode ser considerado o fundamento constitucional de validade dos atos normativos que preveem poderes investigatórios à PGFN.

Isso porque, conforme a teoria dos poderes implícitos, de origem norte-americana, sempre que a Constituição outorga determinada função a um órgão, também lhe concede, de modo implícito, todos os meios que forem necessários para a persecução da finalidade expressamente atribuída. Apesar de sua origem estrangeira, a adoção dessa teoria pela Constituição Federal de 1988 é pacífica no âmbito do STF, conforme jurisprudência já consolidada da corte constitucional, na qual se encontram diversos precedentes reconhecendo a existência de poderes materiais que não estão expressamente previstos na Carta Magna a órgãos como o CNJ, a OAB e o Ministério Público.

Tratando-se da execução de dívidas pecuniárias, é fato notório, na práxis forense, que a efetividade da cobrança depende, em muitos casos, de amplas diligências investigatórias por parte dos respectivos exequentes, tendo em vista que, não raro, os devedores se valem de sofisticados expedientes para blindar, de forma fraudulenta, seus patrimônios da devida expropriação judicial. Por conta disso, à luz da mencionada teoria dos poderes implícitos, não há como negar a existência de poderes de investigação fiscal constitucionalmente conferidos à PGFN, pois a ausência deles acabaria por impedir que o órgão realizasse, de forma efetiva, a sua função de execução da dívida ativa da União.

Vê-se, portanto, que, para permitir o bom desempenho das suas funções e o alcance das suas finalidades institucionais, a legislação infraconstitucional conferiu aos integrantes da PGFN uma série de prerrogativas, que podem ser lidas como poderes instrumentais voltados ao atingimento de uma finalidade pública.

Neste contexto, o conjunto de prerrogativas de natureza investigatória conferidas à PGFN pode ser objeto da seguinte classificação: a) poder de requisição; b) poder de notificação para depoimento; e c) prerrogativa de acesso a dados submetidos a sigilo.

O poder de requisição outorgado à PGFN está previsto em leis diversas, quais sejam, o art. 16, I, “b”, do Decreto-Lei 147/67, que estabelece uma norma geral de poder requisitório oponível a agentes públicos ou privados; o art. 37, inciso XII, da Lei 13.327/2016, que prevê a mesma prerrogativa para toda a AGU; o art. 3º, §3º, da Lei Complementar 105/2001, que obriga especificamente o BC e a CVM a fornecerem informações referentes a operações financeiras; o art. 4º da Lei 9.028/95, que especifica esse dever de informação em relação à Administração Pública Federal; e o art. 20-D, caput e inciso II, da Lei 10.522/2002, que prevê o poder requisitório quando verificados  indícios de fraude.

Dentre os dispositivos supracitados, vale destacar o art. 20-D, caput e inciso II, da Lei 10.522/2002, segundo o qual a PGFN tem a prerrogativa de “requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais”. Tal dispositivo se aplica aos casos em que presentes indícios da prática de ilícitos aptos a atrair a incidência de normas de responsabilidade tributária e o poder de requisição nele previsto pode ser dirigido a autoridades públicas das três esferas federativas.

Também no art. 20-D da Lei 10.522/2002, mas no inciso I, está prevista norma que traz o poder de notificar contribuintes ou terceiros para prestar depoimentos ou esclarecimentos a respeito de ilícitos fiscais constatados pela PGFN. Necessário notar que, assim como a requisição, a convocação para o depoimento ou esclarecimento é considerada uma ordem administrativa, inclusive para fins de eventual responsabilidade em caso de desobediência.

A prerrogativa de acessar dados submetidos a sigilo custodiados pela Receita Federal, por sua vez, está prevista no Parecer PGFN/PGA 980/2004, aprovado pelo Ministério da Fazenda, cujas conclusões foram implementadas no Termo de Definição de Procedimentos firmado no ano seguinte entre PGFN e RFB, segundo o qual “a troca de informações entre a Secretaria da Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional deve ser ampla e irrestrita, não se justificando nenhuma forma de restrição ao compartilhamento de dados cadastrais e de informações econômico-fiscais”.

Diante desse corpo normativo que estabelece poderes e prerrogativas de natureza investigatória à PGFN, é preciso enfatizar que a obtenção, o acesso e a utilização dos dados e informações por parte da autoridade pública devem sempre ser vistos como instrumentos aptos a permitir o alcance de finalidades institucionais pautadas em lei. Assim, à luz do princípio da proporcionalidade, consistem em normas de inequívoca constitucionalidade, na medida em que são adequadas e necessárias para o atingimento das finalidades por ela perseguidas.

À vista de todo o exposto, é possível verificar que a concessão de poderes investigatórios a órgãos que atuam no combate a ilícitos fiscais se coaduna com as melhores práticas internacionais, sendo, inclusive, chancelada no âmbito da OCDE. Nesse aspecto, andou bem a legislação brasileira ao prever poderes investigatórios à PGFN, uma vez que se fundamentam na teoria dos poderes implícitos e se adequam ao princípio da proporcionalidade, pois, além de não representarem restrições consideráveis ou desproporcionais a direitos fundamentais dos contribuintes, são absolutamente indispensáveis para viabilizar a plena realização das funções atribuídas pela Constituição Federal à Procuradoria e à própria advocacia pública.